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Soldados do Batalhão da Guarda Presidencial, do Exército, que fazem a segurança do Palácio do Planalto
Soldados do Batalhão da Guarda Presidencial, do Exército, que fazem a segurança do Palácio do Planalto| Foto: Carolina Antunes/PR

Se a invasão das sedes dos Três Poderes ajudou a acentuar a desconfiança, nunca justificada com provas, do entorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação às Forças Armadas, demandas da esquerda no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso podem ajudar a azedar ainda mais a relação dos militares com o novo governo.

Um desgaste poderá ocorrer ainda nesta semana, se o STF julgar procedente uma ação de 2013 que busca transferir da Justiça Militar para a Justiça Comum processos contra integrantes das Forças Armadas acusados de cometer delitos nas operações de Garantia da Lei e da Ordem. As chamadas GLOs são situações excepcionais em que os militares são chamados para auxiliar na segurança pública.

Nesta quinta-feira (15), o placar estava em 5 a 2 pela manutenção da atual regra, que reserva a juízes militares o julgamento de seus pares. Com isso, faltava apenas um voto para formar a maioria entre os 11 ministros e dar a vitória às Forças Armadas no caso.

Outra potencial fonte de atrito surgiu no PT, com a proposta já anunciada por alguns deputados de propor uma emenda à Constituição que acabe com as GLOs. Assim, os militares passariam a atuar apenas em missões civis, como por exemplo, em ações de socorro a vítimas de desastres. A proposta ainda diz que iria para a reserva qualquer militar que assumisse cargos públicos na máquina do governo e proibiria que eles usassem a função militar para ações políticas.

Por fim, o PSOL ingressou com uma nova ação no STF para que seja rechaçada de antemão uma eventual interpretação do artigo 142 da Constituição, segundo a qual as Forças Armadas poderiam fazer uma intervenção, ainda que pontual, em algum dos poderes que venha a usurpar as funções de outro. Trata-se de uma tese já rejeitada pelo STF, mas que ainda goza de simpatia entre apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e entre parte dos militares da reserva.

A ação no STF para mudar a competência para julgamento de crimes cometidos por militares contraria a cúpula das Forças Armadas, porque o oficialato considera que uma corte civil não conhece os pormenores de uma operação militar. A informação foi repassada à reportagem por dois militares da ativa e de alto escalão que pediram para não serem identificados.

Eles entendem que os soldados escalados para missões de GLO passariam a não usar a força mesmo em situações lícitas e necessárias, com medo de punição por uma corte civil. Isso diminuiria a efetividade das operações e colocaria vidas de militares em risco no terreno.

Além disso, quando um militar é processado na justiça civil, a ação tende a se desenrolar por muitos anos - período em que o militar fica impedido de evoluir na carreira. No caso de soldados do serviço militar obrigatório, jovens que entraram em uma das três forças para passar cerca de um ano saem da entidade respondendo processos que podem se desenrolar por boa parte de suas vidas.

Nos últimos anos, durante a tramitação da ação no STF, entidades e ONGs de esquerda têm pressionado os ministros a retirar ocorrências envolvendo os militares da Justiça Militar. Alegam que as instituições castrenses seriam corporativistas e abafariam violações aos direitos humanos supostamente cometidas por soldados nessas missões.

As Forças Armadas negam que a Justiça Militar seja corporativista. Os militares que conversaram com a reportagem afirmaram considerar que os abusos que já ocorreram foram casos isolados e que exceções não podem levar a mudanças na regra.

Em 2020, o então chefe do Ministério Público Militar, Antônio Pereira Duarte, enviou manifestação ao STF para justificar a manutenção da competência da Justiça castrense para crimes cometidos nas atividades de segurança. Em seu texto, ele disse que as ações de GLO são atividades de natureza militar e que decisões da Justiça em relação a crimes cometidos nessas atividades afetam diretamente as instituições militares e não apenas os soldados envolvidos. Por isso devem ser julgadas na Justiça Militar.

Ele citou decisão de 2004 da Corte, segundo a qual caberia somente aos juízes militares julgar esses crimes, uma vez que suas decisões deveriam resguardar os valores militares.

Quanto à PEC do PT, a cúpula das Forças Armadas entende que a retirada das GLOs de sua alçada representaria um “ataque direto” da esquerda ao Exército. Na visão das fontes ouvidas pela reportagem, trata-se de uma ideia difundida pela ala mais radical do PT, como o ex-deputado José Genoino, que há tempos demonstra interesse em reduzir o poder dos militares no Estado.

Ao menos desde 2017, documentos internos do PT já projetavam, numa eventual volta do partido ao poder, uma retirada em massa de oficiais da máquina pública; uma “subordinação” das Forças Armadas ao poder político eleito, na forma, por exemplo, da nomeação de um civil como ministro da Defesa – o que já se concretizou.

No médio prazo, há planos de retomada de uma integração dos países da América Latina, incluindo a colaboração na área militar, para se contrapor a supostas tentativas dos Estados Unidos de tutelar o continente. Além de projetos de fortalecimento da indústria militar e de desenvolvimento científico e tecnológico, sobretudo com produtos que tenham uso civil.

“A grande questão que está colocada é a supremacia política do poder civil, que comanda, dirige, define, enquadra, pune. Até para que as Forças Armadas recebam o tratamento para defesa nacional. Porque o aparato militar, que é essencial para a defesa, tem que estar subordinado à direção política”, disse Genoino, numa entrevista concedida em novembro de 2021 ao site Opera Mundi.

A nova ação do PSOL no STF, por sua vez, para definir a interpretação do artigo 142, não constitui uma novidade. Em 2020, diante de rumores de que Bolsonaro estaria tentado a decretar uma intervenção militar na Corte, em razão de decisões contrárias ao Executivo, os ministros proferiram decisões, em ações mais antigas, para declarar a inconstitucionalidade de uma medida do tipo.

Luiz Fux e Luís Roberto Barroso proferiram decisões monocráticas para refutar a existência de um pretenso Poder Moderador e sua incumbência às Forças Armadas.

“Para a defesa de um poder sobre os demais a Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes [...] que impõe a cada um deles comedimento, autolimitação e defesa contra o arbítrio, o que apenas se obtém a partir da interação de um Poder com os demais, por meio dos mecanismos institucionais de ‘checks and balances’ expressamente previstos na Constituição”, escreveu Fux em sua decisão.

Observadores e estudiosos da história dos militares, no entanto, percebem que, de forma velada, ainda persiste, especialmente na reserva, a doutrina de que as Forças Armadas ainda são o Poder Moderador. Ele seria empregado, porém, não para resolver conflitos políticos circunstanciais entre os Poderes, mas numa situação extrema, de exceção e cuja solução não estivesse prevista na Constituição, em que a República e a democracia estivessem sob risco.

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