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Perguntas e respostas para entender a "guerra da vacina"
Governador de São Paulo, João Doria, exibe uma ampola da coronavac: briga com Bolsonaro deflagrou a “guerra da vacina”.| Foto: Governo de SP/divulgação

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro e governadores divergem em relação às políticas de combate à doença, que já foi responsável por 156 mil mortes em todo o país. No começo, a disputa era pela manutenção ou não de Luís Henrique Mandetta no cargo de Ministro da Saúde. Depois, houve a briga política pela decretação de lockdown (fechamento total das atividades) e pela prescrição da cloroquina como tratamento preventivo. A mais nova disputa entre União e os estados, principalmente São Paulo, tem nome e sobrenome: a vacina coronavac, do laboratório chinês Sinovac. E agora a chamada "guerra da vacina" pode interferir na futura campanha nacional de imunização contra a Covid-19.

A nova disputa política envolvendo o coronavírus começou após o governador paulista, João Doria (PSDB), defender a vacinação obrigatória e classificar o imunizante coronavac – que no Brasil será produzida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo – como a arma mais eficaz contra a Covid-19.

Revoltado com Doria, que é tido como candidato ao Planalto em 2022 e estaria usando a coronavac para se autopromover, o presidente Jair Bolsonaro reagiu. Primeiro, afirmou que não vai obrigar o brasileiro a tomar a vacina chinesa. Depois, o presidente desautorizou o ministro Eduardo Pazuello, e determinou o cancelamento do protocolo de intenção entre o Ministério da Saúde e o Butantan para a compra de 46 milhões de doses da coronavac pelo governo federal.

A decisão de Bolsonaro gerou mal-estar no governo paulista e em outros governadores, parlamentares e epidemiologistas. Eles alertam para o risco de o Brasil atrasar o início da imunização contra a Covid-19 e de não ter uma estratégia unificada. E tudo pode complicar ainda mais porque, ao que tudo indica, será a Justiça quem vai tomar a decisão final sobre esse tema de saúde pública. Já houve questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o governo federal a comprar a coronavac se ela se mostrar eficaz.

Em meio a essa guerra da vacina, surgem uma série de dúvidas. Quando haverá vacinação? Qual imunizante estará disponível? Parte da população corre risco de ficar sem vacina por causa dessa briga política? A vacinação será obrigatória?

A Gazeta do Povo buscou responder a essas questões e elencou oito perguntas e respostas para entender tudo o que está por trás da guerra da vacina e para saber quais são os possíveis efeitos para a população brasileira.

Perguntas e respostas para entender a guerra da vacina

1. Já há uma vacina segura e eficaz contra a Covid-19?

Apesar da torcida geral da população, não há ainda no mundo inteiro uma vacina segura e eficaz contra a Covid-19 comprovada cientificamente.

No Brasil, a expectativa é que o pedido de liberação dos imunizantes à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ocorra quando as vacinas em desenvolvimento apresentarem um nível de eficácia de aproximadamente 50% (ou seja, de cada dez pessoas vacinadas, pelo menos cinco consigam ter anticorpos suficientes para responder ao coronavírus).

O governador de São Paulo, João Doria, alega que a coronavac pode chegar a uma taxa de eficiência de 98%. Ainda não se sabe qual seria a taxa de imunização das outras vacinas em desenvolvimento.

2. Quais são as vacinas com desenvolvimento mais avançado neste momento? Quando elas podem estar disponíveis para vacinação em massa no Brasil?

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), existem pelo menos 200 vacinas em testes no mundo inteiro. Apenas 44 chegaram à fase de testagem em humanos – os chamados estudos clínicos.

A expectativa é que haja pelo menos uma vacina eficaz e segura entre o fim de 2020 e o início de 2021. Mas isso não significa que todos serão vacinados logo que houver um imunizante. Existe uma série de desafios logísticos: produzir as doses, envasá-las, distribui-las. E os países terão de definir qual parcela da população vai receber a imunização antes – a tendência é que as doses sejam primeiramente aplicadas em profissionais da saúde, idosos e pessoas do grupo de risco.

No Brasil, há quatro vacinas em testes num estágio mais avançado. Em tese, essas são as que têm mais chances de virem a imunizar os brasileiros, pois esses testes estão sendo realizados por meio de parcerias com instituições brasileiras – o que pode facilitar a importação de doses ou mesmo a produção nacional desses imunizantes.

A vacina anglo-sueca da Universidade de Oxford e do laboratório AstraZeneca está sendo testada, no Brasil, numa parceria com a Fiocruz. A chinesa coronavac tem parceria com o Butantan. Também são testadas no Brasil a vacina do laboratório americano Pfizer em parceria com a alemã BionNTech, e a vacina americana do laboratório Janssen (do grupo Johnson & Johnson). Destas, os imunizantes de Oxford e a coronavac são os que estão na frente, caso tenham sua eficácia comprovada.

O governo brasileiro fechou compromisso para comprar 30 milhões de doses da vacina de Oxford para aplicá-las já a partir de janeiro. Também espera produzir, na Fiocruz, outras 70 milhões de doses no primeiro semestre de 2021.

Já o protocolo de intenções entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, rompido por Bolsonaro, previa a aquisição de 46 milhões de doses da coronavac pelo governo federal (6 milhões já estariam disponíveis em dezembro e mais 40 milhões ao longo do primeiro semestre de 2021). Caso o governo federal efetivamente não compre as 46 milhões de doses para o programa nacional de imunização, o governo de São Paulo poderá adquiri-las para imunizar apenas os paulistas.

O governo federal também fechou uma parceria com a Covax Facility, um consórcio internacional liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para garantir a imunização contra o coronavírus quando houver uma vacina eficaz. Esse acordo, que prevê a aquisição pelo Brasil de 40 milhões de doses, ainda não definiu qual será a vacina que o país vai receber.

3. Como a "guerra da vacina" pode afetar a população?

No total, os convênios que haviam sido firmados pelo governo federal previam a aquisição de 186 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 até o fim do primeiro semestre de 2021. Não seria suficiente para todos. O Brasil tem atualmente pouco mais de 200 milhões de habitantes.

No entanto, há muito tempo já não se esperava que todos os brasileiros venham a ser imunizados. Em princípio, as vacinas em desenvolvimento, quando foram liberadas pelas autoridades sanitárias, serão usadas apenas em adultos – e não em crianças e adolescentes (eles não fizeram parte dos testes e não é possível saber se são seguras para essa faixa da população).

Mas a briga política envolvendo a coronavac agrava a situação. Sem a vacina chinesa, o número de doses que estará à disposição do governo federal cai para 146 milhões até o fim do primeiro semestre do ano que vem.

É preciso lembrar ainda que não necessariamente um brasileiro será imunizado com uma única dose. É provável que algumas vacinas exijam duas doses para garantir a imunização.

4. Por que Bolsonaro diz que o Brasil não vai comprar nenhuma vacina chinesa? O que explica a reação do presidente contra esse imunizante? A vacina chinesa traz algum risco?

O presidente Jair Bolsonaro tem defendido que qualquer produto de biotecnologia que venha da China não é de confiança.

“Eu não acredito que ela [a vacina chinesa] transmita segurança suficiente para a população. Esse é o pensamento nosso", disse o presidente em entrevista à Rádio Jovem Pan, na quarta-feira (21). "Tenho certeza que outras vacinas que estão em estudo poderão ser comprovadas cientificamente, não sei quando, pode durar anos. A China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido por lá.”

O laboratório chinês que desenvolve a coronavac, o Sinovac Biotech, é reconhecido internacionalmente. Foi o primeiro do mundo, por exemplo, a descobrir uma vacina contra a chamada gripe A, causada pelo vírus H1N1, em 2009.

A vacina chinesa só poderá ser usada no Brasil caso se mostre segura e eficaz. Segura ela já foi considerada, segundo os testes feitos em voluntários – inclusive no Brasil. Mas a eficácia ainda depende de comprovação.

Outro fator a ser considerado é que a coronavac só poderá ser usada no Brasil se for aprovada pela Anvisa – um órgão técnico do governo federal. Portanto, se a Anvisa aprová-la, a coronavac será confiável.

O governador Doria vem sugerindo que estaria havendo interferência política na Anvisa para prejudicar a coronavac. Somente após pressão pública é que, na sexta-feira (23), a Anvisa autorizou a importação, pelo Butantan, das primeiras 6 milhões de doses da vacina chinesa. Mas o governo paulista reclama também da demora da agência em autorizar a importação dos insumos que permitirão que o Butantan produza outras 40 milhões de doses no Brasil.

Nos bastidores, a reação de Bolsonaro contra a coronavac é vista como tendo duas motivações políticas principais: manter o discurso e o posicionamento do governo contra a China (que empolga sua militância mais ideológica) e tirar o protagonismo de Doria (possível adversário na eleição de 2022) no combate ao coronavírus.

Há ainda um possível fator econômico na "guerra da vacina" entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores. Caso o governo federal inclua a coronavac no Programa Nacional de Imunização (PNI), a vacina chinesa será distribuída por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e o custo ficaria com a União e não com os estados. Mas Bolsonaro diz que não está disposto a gastar dinheiro público com um produto originalmente chinês.

5. A vacina que pode vir a ser produzida no Instituto Butantan é chinesa ou brasileira, como alguns vêm dizendo?

Assim como ocorre em várias indústrias, a vacina coronavac que poderá imunizar brasileiros será fabricada no Brasil, mas a tecnologia e a matéria-prima são chinesas. Para conseguir produzir a vacina, a fábrica do Butantan foi ampliada e recebeu investimentos privados. A expectativa do instituto é que, assim que a matéria-prima chegue ao Brasil, serão necessários 45 dias para a produção do primeiro lote do imunizante.

Do ponto de vista político, porém, a classificação que se dará à coronavac produzida no Instituto Butantan – vacina brasileira ou chinesa – importa. Na quinta-feira (22), quando negou a compra da vacina "chinesa", o Ministério da Saúde informou que eventualmente pode vir a adquirir doses da vacina "brasileira" produzida no Butantan – que será a mesma coronavac da China. Analistas avaliam que esse discurso pretende desassociar o Planalto da compra de um produto chinês para que Bolsonaro possa manter seu discurso diante dos apoiadores caso o país precise recorrer à coronavac.

6. Um estado pode vir adquirir doses da vacina contra a Covid-19 para usar apenas em sua população?

Em teoria, um estado pode produzir uma vacina ou mesmo importá-la para imunizar apenas a sua população. E isso pode ocorrer se a "guerra da vacina" prejudicar a implantação de um programa nacional de imunização pelo governo federal.

O próprio governo federal já admite, diante da "guerra da vacina", a possibilidade de que não haja apenas uma campanha nacional de imunização, mas várias campanhas estaduais. “Todo mundo pode comprar. O estado pode comprar. Eles têm recurso também...", afirmou o vice-presidente Hamilton Mourão na quinta-feira (22).

Alguns estados inclusive já fizeram reservas orçamentárias para comprar doses do imunizante contra a Covid-19. O Paraná, por exemplo, reservou R$ 100 milhões, além de ter um protocolo de intenções para produzir no estado, a partir do segundo semestre de 2021, a vacina russa sputnik-5. Já o governo do Espírito Santo negocia a aquisição de doses da vacina da Pfizer/Biontech – embora insista que deve haver um plano nacional de imunização.

Mas o caso da coronavac é o mais emblemático porque a vacina é uma das em fase mais adiantada de desenvolvimento. O governo de São Paulo afirma que terá 6 milhões de doses importadas diretamente da China e que poderá produzir, em um primeiro momento, mais 40 milhões de doses. Isso é suficiente para imunizar toda a população de São Paulo, caso o governo federal efetivamente se recuse a comprar doses da coronavac.

Uma terceira possibilidade é que estados se unam em consórcios para comprarem doses da vacina. Isso poderia ser feito inclusive com a coronavac.

7. O Estado pode impor a imunização obrigatória para todos os brasileiros?

A "guerra da vacina" tem outra vertente além da briga em torno do imunizante chinês: a obrigatoriedade ou não da vacinação. E essa polêmica novamente envolve os dois principais personagens desta história: Bolsonaro e Doria. O governador de São Paulo defendeu a vacinação compulsória. Depois, voltou atrás. Mas foi o suficiente para Bolsonaro se contrapor e chamar o adversário de "nanico projeto de ditador". O presidente é contra a vacinação obrigatória e diz que cada pessoa tem a liberdade para decidir se quer ou não ser imunizado.

A possibilidade de uma imunização compulsória não é motivo de polêmica apenas política. O assunto é visto como controverso até mesmo por especialistas em Direito. Teoricamente, com base na Lei 13.979/20, que instituiu “as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, a vacinação obrigatória em decorrência da Covid-19 pode ser instituída, mas após determinação do Ministério da Saúde.

Há a possibilidade de que as políticas públicas de combate ao coronavírus também sejam instituídas pelos estados. Mas a lei determina a anuência do ministério em uma eventual vacinação obrigatória. Porém, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de abril deste ano deu autonomia a estados e municípios para determinar medidas emergenciais para o enfrentamento ao coronavírus, como a decretação de lockdown. Além disso, o artigo 198 da Constituição afirma que “ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. Apesar da hierarquização, o sistema é descentralizado. Em tese, com base nesses dispositivos legais, governadores e prefeitos poderiam tentar instituir a vacinação obrigatória.

Por causa dessa dúvida, o PDT ingressou com uma ação para que o Supremo Tribunal Federal (STF) dê a palavra final sobre esse assunto. Na prática, o partido pede que o Supremo decida se estados e municípios podem impor a vacinação obrigatória.

Já o PTB também ingressou com outra ação no Supremo para suprimir o artigo da Lei 13.979/20 que dá liberdade aos estados implementarem suas respectivas políticas públicas de combate ao coronavírus – o que, por sua vez, impediria a possibilidade de eles estabelecerem a vacinação compulsória.

Na sexta-feira (24), o relator dessas duas ações no STF, ministro Ricardo Lewandowski, informou que não tomará uma decisão sozinho sobre o tema, e vai levar o caso ao plenário do Supremo.

8. O Congresso pode aprovar uma lei estabelecendo a obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus?

Sim, o Congresso tem autonomia para aprovar esse tipo de lei, tirando inclusive a autonomia de o Ministério da Saúde definir isso (conforme consta da Lei 13.979/20) e eventualmente mudando a legislação para reverter o entendimento do STF sobre o assunto. Mas o presidente Jair Bolsonaro, que é contra a vacinação obrigatória, pode vetar a proposta se ela vier a ser aprovada.

O veto eventualmente pode ser derrubado pelos próprios parlamentares. Mas, ainda que um projeto nesse sentido efetivamente vire lei após a derrubada do veto, dificilmente não será questionado no STF, já que o tema é controverso e esbarra em questionamentos sobre eventuais violações a princípios constitucionais. Ou seja, o Supremo poderia vir a ser chamado a decidir sobre o assunto um segunda vez – prejudicando ainda mais uma estratégia nacional de imunização.

Atualmente, há pelo menos um projeto de lei que institui a vacinação obrigatória contra a Covid-19, desde que o imunizante seja aprovado pela Anvisa. A proposta foi apresentada pelos deputados Enio Verri (PT-PR) e Gleisi Hoffmann (PT-PR).

Há mais três projetos que tratam do mesmo assunto, mas por ângulos diferentes. Proposta do deputado Alexandre Frota (PSDB-SP) não fixa a vacinação compulsória, mas estabelece que o brasileiro que não se vacinar e vier a contrair Covid-19 terá de pagar pelo tratamento se for atendido na rede pública.

Frota também propôs outro projeto para obrigar o governo federal a incorporar ao Programa Nacional de Imunizações todas as vacinas contra o coronavírus aprovadas pela Anvisa, não sendo permitida a exclusão de nenhuma.

No extremo oposto, está um projeto da deputada Carla Zambelli (PSL-SP). A proposta da parlamentar altera a lei de enfrentamento do coronavírus (13.979/20) para proibir qualquer possibilidade de haver imposição de vacinação obrigatória contra a Covid-19.

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