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Presos 8 de janeiro
Dos quase 1,5 mil presos em flagrante nos dias 8 e 9 de janeiro nos atos de vandalismo em Brasília, cerca de 200 continuam em regime fechado.| Foto: André Borges/EFE

Os processos judiciais envolvendo os quase 1,5 mil detidos após os atos de vandalismo de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes têm gerado situações inéditas e curiosas na história do Direito brasileiro. Além das acusações padronizadas, emitidas até mais de um dia após as prisões, chamou também a atenção o uso de um questionário padrão para inquirir os acusados em Brasília. Ele foi aplicado no primeiro contato de cada um dos acusados com um magistrado, seguindo roteiro pré-estabelecido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao todo, quatro juízes auxiliares do gabinete do ministro se revezaram na leitura de uma série de 16 perguntas feitas aos detidos. São elas:

  • O(a) senhor(a) recebeu auxílio para vir a Brasília?
  • Onde o(a) senhora(a) estava antes de se deslocar para a Praça dos Três Poderes?
  • O(a) senhor(a) recebeu algum tipo de ajuda financeira para transporte e estadia para vir e se manter em Brasília? Se sim por quem?
  • O(a) senhor(a) trouxe algum tipo de arma, arma branca, faca, instrumento perfurocortante, substância inflamável?
  • O(a) senhor(a) passou por alguma revista no caminho?
  • Havia qualquer tipo de bloqueio policial? A Polícia Militar estava presente? Qual foi a postura da corporação no caso?
  • Como que as pessoas entraram no prédio? Especificamente no Congresso? Elas estavam liberadas?
  • Ao invadir o prédio do Congresso, você queria impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais?
  • O(a) senhor(a) pretendia com a invasão, auxiliar a depor o governo ou auxiliar a implantação de um novo governo?
  • Quem que o senhor apoiava quando participou da invasão?
  • O(a) senhor(a) danificou ou depredou algum prédio? Se sim, qual o motivo desta depredação?
  • O(a) senhor(a) estava usando máscara ou algum tipo de cobertor no rosto? Se sim, por qual motivo?
  • O(a) senhor(a) acredita nas afirmações do ex-presidente sobre a ocorrência de fraude nas urnas e no processo eleitoral?
  • O(a) senhor(a) queria a queda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o retorno do presidente Jair Bolsonaro?
  • Se o ex-presidente tivesse feito uma declaração pública reconhecendo a derrota consequentemente a vitória do atual presidente e a lisura e confiabilidade do processo eleitoral, o(a) senhor(a) teria ido à Brasília ou à Praça dos Três Poderes?

Os advogados dos manifestantes ainda presos na capital federal ou que estão usando tornozeleira eletrônica afirmam que essa abordagem padrão foi aplicada a todos os acusados, sem levar em conta a individualização dos casos e os diferentes níveis de envolvimento, o que levanta preocupações sobre limites adicionais à defesa. Os presos foram todos acusados genericamente dos graves crimes de "associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado".

Em resposta a uma recente reportagem da BBC News Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou que os processos estão sendo conduzidos com "a garantia do contraditório e da ampla defesa". A nota da Corte enviada à emissora enfatiza que o devido processo legal tem sido assegurado a todos os investigados pela Polícia Federal (PF) e denunciados pela Procuradoria Geral da República (PGR).

Acusação genérica impossibilita a individualização das culpas

Para os advogados dos presos, contudo, a repetição de perguntas aos investigados de diferentes unidades da Federação evidencia a total falta de consideração pelas peculiaridades de cada caso individual, além de carregar o risco de uma impossibilidade de atribuição justa e apropriada de culpa. Com as denúncias confirmadas, a Corte atingiu até agora 1.290 réus desde o início das investigações. Das 2.151 pessoas presas em flagrante em 8 janeiro e até mesmo no dia seguinte, 251 permanecem detidas em regime fechado nos presídios da Papuda e Colmeia (feminino), no Distrito Federal.

A Justiça concluiu em 18 de janeiro as audiências de 1.410 suspeitos, enviando 1.408 pedidos ao STF para prisões preventivas, liberdade provisória com medidas cautelares e relaxamento de prisão. A inclusão de pessoas presas em frente ao Quartel-General (QG) do Exército foi criticada pelos advogados por falta de previsão legal para o julgamento pela Corte. De toda forma, a falta de individualização das acusações é apontada como o maior problema, resultando em julgamento coletivo sem qualquer discernimento.

Em julho, um jovem preso que é portador de transtornos do espectro autista foi solto provisoriamente após passar sete meses no presídio da Papuda sem sequer compreender os motivos de sua prisão. Também teve impacto nas redes sociais os casos de donas de casa separadas há meses de filhos menores de cinco anos. O vídeo com a cena do reencontro com os filhos de Alessandra Faria Rondon, presa em janeiro no Senado e solta no início de julho, comoveu internautas, advogados e membros da oposição na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro.

Perguntas indicam esforço para convalidar o julgamento prévio

Os advogados ressaltam ainda o viés político das perguntas, considerando que o STF mostra nelas um suposto interesse em obter informações sobre a participação do acusado em uma invasão premeditada, incluindo detalhes de auxílio financeiro, porte de armas e eventual leniência de bloqueios policiais. As questões vão além e buscam saber a motivação por trás da invasão da praça, sugerindo abordagem tendenciosa em direção a um possível contexto político específico.

Neste sentido, o questionário visa saber quem a pessoa apoiava durante a invasão, evidenciando interesse em associações políticas e se estava motivado por declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro acerca de eventual fraude nas urnas e na lisura do processo eleitoral. Há ainda perguntas mais explícitas sobre a intenção de golpe de Estado para derrubar o presidente e restaurar Bolsonaro no poder, levando os advogados a suspeitarem de uma possível manipulação ou direcionamento das respostas para fins políticos.

Defensores reclamam da falta de devidas audiências de custódia

As acusações despachadas de forma padronizada e sem análise individualizada dos casos, levantam preocupações sobre a justiça e o devido processo legal. “Cada acusado deve ter o direito de ser tratado como um indivíduo, com suas próprias circunstâncias e responsabilidades, e a acusação deve ser fundamentada em evidências específicas relacionadas ao seu envolvimento nos atos de vandalismo”, comentou Carolina Siebra, advogada de uma presa no 8 de janeiro, à Gazeta do Povo.

Segundo ela, é essencial garantir que os acusados tenham acesso a uma defesa adequada e que os seus direitos constitucionais sejam respeitados ao longo do processo judicial. “Os advogados têm a função de assegurar que seus clientes tenham julgamento justo, garantindo que provas e argumentos relevantes sejam apresentados em sua defesa”, disse. Carolina alega que teriam ocorrido violações dos direitos nas prisões devido a audiências de custódia irregulares. "Os juízes auxiliares atuaram como delegados e seguiram um script, restringindo os pedidos da defesa. Um absurdo”.

O advogado Claudio Caivano disse à reportagem que a questão do interrogatório padronizado tornou ainda mais grave a ofensa ao princípio do juiz natural, que, segundo ele, já havia sido violado logo no começo. “Além da ausência de duplo grau de jurisdição e da aberração de pessoas sem foro privilegiado serem julgadas pelo STF, temos nesse contexto a delegação de juízes usados somente para cumprimento de atos processuais. Trata-se da prova cabal do desrespeito ao ordenamento jurídico brasileiro, portanto, a ausência completa de Justiça”, disse. Ele pediu a transferência dos casos de seus clientes para a primeira instância, mas acabaram sendo devolvidos ao Supremo.

Gustavo Ribeiro, defensor público federal e coordenador da defesa dos réus do 8 de janeiro, falando em nome de seus colegas da Defensoria Pública da União (DPU), afirmou à BBC News Brasil que enxerga "excessos" nas prisões e processos judiciais relacionados ao caso. Ele destacou que há uma série de questões totalmente injustificáveis, a exemplo das prisões prolongadas de pessoas cuja culpa não foi comprovada.


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