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Município de Vicente Dutra, no RS
Município de Vicente Dutra, no RS| Foto: Prefeitura de Vicente Dutra / Facebook

A pequena cidade de Vicente Dutra, no noroeste do Rio Grande do Sul, com 4.665 habitantes, vive as consequências e as inseguranças da homologação da Terra Indígena Rio dos Índios, que não levou em conta o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Por meio do Decreto 11.505, publicado em abril de 2023 e assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), cerca de 230 famílias serão afetadas - entre pequenos agricultores, proprietários em área urbana e de um empreendimento turístico. Segundo o Censo 2022, existem 370 não indígenas na área. Os 711 hectares previstos no decreto serão agora destinados para os 182 indígenas que vivem no município, de acordo com dados do Censo Indígena 2022.

Desde a primeira portaria de identificação da área, publicada em 2000, os proprietários de terra buscavam reverter o processo. No entanto, com a homologação no começo deste ano, os títulos de propriedade, que datavam de até 100 anos, passarão a ser registrados como patrimônio da União para que o processo seja finalizado.

A demarcação em Vicente Dutra não levou em conta o marco temporal para demarcação de terras indígenas. De acordo com essa tese, somente podem ser objeto de demarcação as áreas habitadas por indígenas em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Sendo assim, as áreas dos agricultores de Vicente Dutra, com títulos centenários, não poderiam ser destinadas aos indígenas.

A tese é alvo de novo julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no qual já foram proferidos quatro votos contrários ao marco temporal e apenas dois favoráveis. Nesta quarta-feira (20), os ministros do STF voltam a julgar o processo e os cinco ministros que ainda não votaram (Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Dias Toffoli) poderão definir o destino de outras terras indígenas que estão em processo de demarcação.

O STF definiu a data de 5 de outubro de 1988 no julgamento anterior, em 2009, sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na época, o Supremo decidiu em favor dos indígenas e contra arrozeiros que chegaram à região nos anos 90 – depois da promulgação da Constituição.

Indenização por benfeitorias depende de avaliação de Comissão da Funai 

Já na reta final do processo, com a homologação, as 230 famílias afetadas pela Terra Indígena Rio dos Índios têm direito apenas à indenização pelas benfeitorias localizadas nas propriedades. A legislação atual não prevê a possibilidade de pagamento pelas propriedades. O recebimento dos valores, no entanto, está condicionado à avaliação de uma comissão designada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Um levantamento sobre as benfeitorias existentes na área demarcada em Vicente Dutra foi realizado em 2010. De lá para cá, as famílias podem não ser ressarcidas por eventuais melhorias ou qualquer nova benfeitoria em suas áreas. Caso um agricultor tivesse em 2010 uma casa de madeira, por exemplo, e no decorrer desses anos tenha conseguido construir uma casa de alvenaria, a benfeitoria pode não ser considerada para fins de indenização.

A avaliação da situação de cada proprietário de terra em Vicente Dutra dependerá de um grupo de funcionários da Funai. Uma portaria da Funai, publicada em 1º de setembro, constituiu uma Comissão de Pagamento, composta por seis membros, para indenizar as famílias que vivem na Terra Indígena Rio dos Índios. “Não tem exatamente uma regra, apenas um manual de orientações, que é reciclado há décadas. Mas não tem nem uma portaria que normatize o procedimento de análise de boa-fé e pagamentos”, afirmou um funcionário da Funai sob a condição de anonimato.

De acordo com a portaria de criação, a Comissão de Pagamento tem 54 dias para a realização dos trabalhos de regularização fundiária da Terra Indígena Rio dos Índios, e dez dias para a entrega do relatório dos pagamentos, a contar de 18 de setembro de 2023.

“Situação das famílias de agricultores é dramática”, afirma procurador do município 

Há em torno de 70 famílias de agricultores vivendo atualmente na Terra Indígena em Vicente Dutra. Eles têm, em sua maioria, áreas menores de 30 hectares. A base de sustentação desse grupo é o cultivo de culturas anuais, especialmente milho, feijão, porongo e fumo, sendo que algumas propriedades também desenvolvem atividade de fruticultura.

De acordo com o procurador do município, Agnelo Fabiano Prado da Silva, a pequena cidade gaúcha não dispõe de outras áreas que possam abrigar os agricultores desapropriados e a situação é dramática. “Não temos, no município, áreas para destinar para as famílias. A questão do reassentamento é dramática. Sabemos que a Funai não tem orçamento para pagar [as benfeitorias] e quando pagar, vai ser aos poucos. O reassentamento vai ter que ser pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e isso também é uma dificuldade que o Estado tem, de modo geral”, pontuou o procurador.

Em caso de demarcação de terra indígena, cabe à Funai a regularização desses territórios, resolvendo as questões que envolvem os não indígenas que porventura habitam a área. No caso de agricultores desapropriados, somente os que têm perfil para se tornarem beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária entram no cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Demarcação de terra indígena afeta empreendimento turístico 

O Balneário Águas do Prado, empreendimento turístico que fica no município de Vicente Dutra, será um dos afetados pela demarcação. A área do empreendimento conta com aproximadamente 25 hectares e tem entre os atrativos as águas termais minerais e a lamaterapia. O balneário conta ainda com 196 cabanas, que pertencem a proprietários diferentes, sendo que 17 famílias residem ali mesmo, enquanto os demais donos têm outras residências e alugam as cabanas para turistas, sobretudo durante o verão. Além disso, o empreendimento tem várias edificações como piscinas, banheiras de hidromassagem, salas de fisioterapia, salões de festas, restaurante e instalações para camping.

A inclusão da área do empreendimento turístico já foi apontada, por antropólogos, como um erro no procedimento de demarcação. É o que afirma a tese de doutorado do procurador de Vicente Dutra, Agnelo da Silva. De acordo com o autor, a antropóloga Juracilda Veiga, então Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação da Funai, teria apontado, em memorando, a necessidade de a Funai admitir erro antropológico de procedimento de demarcação em Rio dos Índios. “O empreendimento descaracteriza a T.I. para cumprir determinação Constitucional de garantir a sobrevivência física e cultural dos Kaingang, conforme seus usos e costumes [...] O empreendimento está no perímetro urbano e se constitui como base importante da economia do pequeno município de Vicente Dutra”, diz um trecho atribuído à antropóloga.

A Gazeta do Povo tentou contato com a antropóloga para confirmar a veracidade do trecho transcrito, mas não conseguiu retorno até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto para manifestação.

Decisão sobre o marco temporal poderia ter mudado o desfecho do caso de Vicente Dutra

O caso da demarcação em Vicente Dutra (RS) poderia ter outro desfecho, caso o imbróglio sobre o marco temporal já estivesse resolvido. A definição sobre como se dará a demarcação de terras indígenas no Brasil segue sem previsão de desfecho, tramitando ao mesmo tempo no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF).

A Câmara dos Deputados aprovou, no final de maio, o Projeto de Lei 490/2007, que assegura a tese do marco temporal e garante o direito à indenização também pelas propriedades, e não somente pelas benfeitorias. O projeto agora tramita no Senado e já foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). Mas a proposição ainda precisa ser aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde já tem parecer favorável, e no plenário do Senado. Se aprovado, seguirá para a sanção presidencial.

Enquanto isso, o STF também julga a tese do marco temporal. Lá, os ministros estão analisando um processo específico de posse de uma área em Santa Catarina, a qual pode virar jurisprudência e nortear todas as decisões futuras sobre o tema.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está manobrando para atrasar a discussão do assunto no Senado, com a esperança de ganhar tempo para que o Supremo decida acabar com marco temporal e facilite a demarcação de mais terras indígenas no Brasil.

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