No julgamento do juiz de garantias, STF acolheu, total ou parcialmente, 23 das 26 contestações feitas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)| Foto: Carlos Moura/SCO/STF
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Apesar de ter obrigado os tribunais de todo o país a implementar o juiz de garantias em no máximo 2 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou esvaziando, em boa medida, algumas regras da atuação desse magistrado que poderiam dificultar, em algum grau, a efetividade de medidas necessárias à investigação de crimes e a punição dos culpados ao fim do processo.

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Além disso, a Corte deu aos tribunais maior autonomia para organizar a forma como o juiz de garantias será implementado, de modo a não prejudicar o andamento das atuais ações penais, e instituir o modelo de modo regionalizado, para não sobrecarregar ainda mais magistrados que atuam sozinhos em uma comarca em todos os tipos de processo, não só penais.

Dentro da advocacia, a criação do juiz de garantias foi visto como um avanço, no sentido de reforçar o sistema acusatório, princípio pelo qual compete somente à polícia e ao Ministério Público investigar crimes, cabendo ao juiz que supervisiona o inquérito somente controlar a legalidade dos atos, impedindo que medidas invasivas violem direitos dos investigados.

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Por outro lado, o julgamento do STF preservou o poder atual do juiz na investigação. Criminalistas consultados pela reportagem avaliam que, na prática, a depender da mentalidade do juiz, não haverá necessariamente postura mais imparcial como se esperava.

O juiz de garantias é um modelo aprovado em lei em 2019, que altera a forma como os crimes são investigados e seus autores julgados no país. Atualmente, cabe a um único juiz, na primeira instância, supervisionar a investigação (fase de inquérito, onde as provas são colhidas em diligências que ele mesmo autoriza) e conduzir a ação penal (fase do processo, em que novas provas podem ser produzidas e as partes e testemunhas depõem) até o julgamento final, pela condenação ou absolvição.

Mas o juiz de garantias prevê a divisão dessas funções. Um magistrado, o juiz de garantias, atuaria na investigação e outro no processo e julgamento. O objetivo é assegurar a imparcialidade. O argumento é que quando o juiz controla a investigação, fica inclinado a manter sua posição na sentença final. Ou seja, forma sua convicção logo no início do caso e tenderia a ficar preso a ela, mesmo que depois as partes – vítima, acusação ou investigado – tragam novos elementos, ao longo do processo, capazes de convencê-lo de outra versão dos fatos ou outro.

Os maiores defensores da lei estão na advocacia e defensorias públicas, que veem no atual processo penal uma tendência forte à condenação de réus, por influência da investigação executada pela polícia. Boa parte dos membros do Ministério Público e do Judiciário se opunha ao juiz de garantias, mas não necessariamente pela divisão em si, mas pela forma como foi regulamentada pelo Congresso dentro do chamado “pacote anticrime”, aprovado em 2019.

Então ministro da Justiça, o ex-juiz e hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR) recomendou ao então presidente Jair Bolsonaro (PL) que vetasse os dispositivos do juiz de garantias, alegando que o Judiciário ainda não estava preparado para se reorganizar e dividir as tarefas, especialmente porque em boa parte do interior do país existe apenas um juiz para julgar processos, não apenas criminais, mas também causas cíveis. O risco era de atrasar ou tumultuar o andamento das investigações e ações, aumentando a prescrição dos casos e a impunidade.

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Com os mesmos argumentos, associações de juízes e de promotores acionaram então o STF para suspender a lei e declará-la inconstitucional. Na época, Dias Toffoli presidia a Corte e determinou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estudasse a implementação. O ministro Luiz Fux foi sorteado relator das ações. Com carreira e ligações fortes no Judiciário, atendeu aos apelos das associações do segmento e suspendeu a validade da lei. Só neste ano elas começaram a ser julgadas e Fux votou, em junho, pela facultatividade da implementação, mas ficou vencido, com a maioria dos colegas votando pela obrigatoriedade.

Pontos da lei sobre o juiz de garantias alterados pelo STF

Mas uma série de outras obrigações previstas na lei para o juiz de garantias, que tendiam a favorecer muito a posição de defesa dos investigados, acabaram atenuadas. No final, das 26 contestações feitas pelas associações de juízes e procuradores na lei, 23 foram acolhidas total ou parcialmente pelo STF no julgamento, que durou mais de dez sessões.

A lei proibia, por exemplo, que o juiz de garantias pudesse determinar, por sua própria iniciativa, a coleta de provas fase de investigação, o que caberia somente à polícia e ao MP. Isso foi declarado inconstitucional pelo STF, que decidiu que, pontualmente, ele poderá determinar a realização de diligências suplementares para dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento final da ação.

O pacote anticrime previa que, quando o investigado estivesse preso, o juiz de garantias poderia prorrogar por uma única vez, por até 15 dias, a duração do inquérito. Passado esse prazo, se a investigação não estivesse concluída, o investigado teria que ser solto. O STF decidiu que o juiz de garantias pode prorrogar o inquérito quantas vezes forem necessárias, diante de elementos concretos e da complexidade da investigação. Além disso, definiu que o vencimento do prazo para o fim do inquérito não leva à revogação automática da prisão preventiva.

Outra dificuldade criada pela lei era que os autos produzidos durante a investigação pelo juiz de garantias não poderiam ser integralmente repassados para o juiz do processo e julgamento. Só seriam enviados documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas. Isso também caiu e tudo será remetido.

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Importante mudança foi feita nas audiências de custódia, procedimento segundo o qual qualquer pessoa presa em flagrante deve ter a prisão avaliada em até 24 horas pelo juiz, na presença de advogado ou defensor e membro do MP. A lei previa que isso deveria ser feito sempre de forma presencial, caso contrário a prisão seria revogada. O STF assentou que isso poderá ser feito por videoconferência e que sua realização assim não leva à soltura automática.

Dentro da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o julgamento foi visto como uma “vitória espetacular”, segundo um integrante da entidade consultado pela reportagem. “O STF, ao reconhecer mais de duas dezenas de inconstitucionalidades na lei, salvou a criação do juiz das garantias e tornou viável sua implementação”, afirmou a AMB.

Como o STF deu liberdade para os tribunais estaduais implementarem a divisão das tarefas, a entidade espera que o modelo seguido seja o que existe desde 1984 em São Paulo. Existe no estado o Departamento Estadual de Inquéritos Policiais (Dipo), que concentra as investigações nas mãos do juiz corregedor e de outros 10 juízes auxiliares e que supervisionam os inquéritos nas cidades com maior movimentação: além da capital paulista, Araçatuba, Bauru, Campinas, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Santos, São José dos Campos e Sorocaba.

Na prática, eles atuam como juízes de garantias. Quando o inquérito termina e o Ministério Público oferece uma denúncia, o caso é enviado para vara criminal do local onde o crime ocorreu. O juiz, que não atuou na investigação, decide se recebe ou rejeita a denúncia. Em caso positivo, conduz o processo e depois julga a ação. A expectativa é de que esse modelo seja implementado em todo o país, de forma gradual, de modo que várias comarcas sejam agrupadas em regiões, dentro da qual alguns magistrados atuem como juízes de garantias.

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Imparcialidade

Apesar do entusiasmo de boa parte da advocacia criminal, o criminalista, mestre e professor de Direito Penal e Processo Penal Rafael Paiva vê com cautela os possíveis ganhos esperados para garantir maior imparcialidade no processo penal, sobretudo em casos comuns e corriqueiros.

“Há uma espécie de supervalorização da figura do juiz de garantias. É uma figura adequada para um processo constitucional acusatório, em que a principal característica é que o magistrado seja equidistante em relação às partes, um sujeito mais passivo, que não tem papel muito ativo na investigação, tudo para buscar um julgamento mais imparcial possível. Mas, na prática, pode mudar pouca coisa, a depender do juiz. Aquele que é legalista, e que na dúvida absolve, tenderá a continuar atuando de forma correta. Mas aquele que acha que deve ser um justiceiro, que na dúvida condena, terá seu poder restringido, já que ele não atuará na fase de investigação. Por outro lado, esse juiz, atuando na fase do processo, poderá rever a atuação do juiz de garantias, podendo até prender uma pessoa que na investigação ficou solta”, diz.

O criminalista considera um ganho, de qualquer modo, a supervisão maior que haverá nas investigações, principalmente aquelas que são tocadas pela polícia ou MP sem conhecimento do juiz. O STF estabeleceu que toda apuração criminal, ainda que em fase preliminar, deve ser remetida para um juiz verificar se está sendo feita dentro da legalidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]