O Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar a partir desta quarta-feira (18) um recurso do Google que tenta impedir a quebra de sigilo de buscas de usuários na internet. Os ministros analisarão se é possível quebrar o sigilo de um conjunto não identificado de pessoas, sem que haja a individualização de condutas ou de justificativas. A empresa afirma que, se a medida for autorizada, pode se tornar uma forma de o Estado vigiar indevidamente os cidadãos e violar seu direito à privacidade.
A discussão ocorre no Recurso Extraordinário 1301250, que está relacionado à investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018, no Rio de Janeiro. Mas ele tem repercussão geral conhecida, o que significa que o que for decidido servirá de parâmetro para os demais tribunais do país em casos semelhantes.
O recurso discute se o Google deve fornecer a lista de usuários que pesquisaram combinações de palavras relacionadas à vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco ao longo da semana que antecedeu sua morte, em 14 de março de 2018. Isso significa uma ação de vigilância em massa de usuários do buscador.
Decisões da primeira instância e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) haviam determinado que o Google disponibilizasse as informações, mas a empresa recorreu ao STF alegando violação ao direito à privacidade. Nas decisões, os juízes alegam que direitos à privacidade e ao sigilo de dados não são absolutos, e por isso podem ser relativizados em hipóteses excepcionais, dentre as quais a de investigação criminal.
A gigante da tecnologia, no entanto, afirma que a medida, solicitada inicialmente pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, abre margem para que pesquisas online se transformem em meios de vigiar os usuários de internet indevidamente. Ameaças aos cidadãos e inconstitucionalidades são apontadas por analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Decisão pode gerar ameaças aos cidadãos
Analistas indicam que pode haver ameaças aos cidadãos caso o STF entenda que o recurso do Google não é procedente. Assim, se o julgamento terminar favorável a permitir o fornecimento dessas informações indiscriminadamente, poderá abrir um perigoso precedente para o Judiciário brasileiro invadir a privacidade dos cidadãos coletivamente em detrimento de uma questão individual.
Para a advogada especialista em Direito Constitucional e mestre em Direito Público administrativo pela FGV, Vera Chemim, há uma ameaça concreta à vida privada dos brasileiros, além de uma imposição de caráter “ditatorial e constrangedora”, inclusive para empresas que atuam nesse segmento, como o Google e outras.
“Tais ameaças são múltiplas, uma vez que a exposição generalizada de dados pessoais telemáticos representa uma invasão de privacidade que demanda indenização por danos morais e/ou materiais, sem olvidar [esquecer] que a disponibilização de tais dados pode colocar a vida dessas pessoas em risco, além de provocarem prejuízos de natureza financeira quando se tratar de empresas concorrentes”, afirma a advogada.
De acordo com o advogado constitucionalista especialista em liberdade de expressão André Marsiglia, o julgamento pode determinar que em vez de haver uma quebra individual do sigilo em casos criminais específicos, as autoridades possam fazer investigações massivas de todas as pessoas que se manifestaram de determinada forma ou pesquisaram sobre um determinado fato. “A lei, em especial a lei penal, exige que você justifique, de forma individualizada, qual é a conduta que foi ou qual é o indício de ilicitude para que uma quebra de sigilo seja feita. Isso vale para qualquer tipo de quebra de sigilo. Ele necessita de um indício concreto de uma pessoa individualizada”, lembrou Marsiglia.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), na qualidade de amicus curiae (entidade que não é parte envolvida mas pode fornecer informações para o julgamento) no Recurso Extraordinário, sustenta a inconstitucionalidade da medida. Para o instituto, a medida "esbarra no núcleo do direito fundamental à proteção de dados, na medida em que enseja grave risco de um cenário de vigilância permanente (proporcionalidade em sentido estrito)".
As preocupações se agravam em razão da repercussão geral firmada pelo STF ao julgar o caso. “O que for decidido a respeito do Google será vinculante para as demais plataformas, ou seja, passará a valer tanto para outros sites de busca, como para redes sociais”, afirmou Marsiglia.
Decisão do STF pode se tornar ferramenta de vigilância política, diz analista
Para os advogados ouvidos pela Gazeta do Povo, há margem para uma “vigilância dos cidadãos”. O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, alerta, em especial, para a potencial de criação de um mecanismo de vigilância em massa, chamado de “hipervigilantismo”. “A premissa se inverte, pois se aponta a localidade de inúmeras e inquantificáveis pessoas, sem cogitação prévia de ligação com alguma atividade criminosa”, afirmou Vieira.
Para Marsiglia, as justificativas e a individualização das quebras de sigilo são essenciais nas ordens judiciais. “Se você não precisa justificar porque aquele sigilo está sendo quebrado, se você não precisa individualizar a razão de querer quebrar o sigilo daquela pessoa, o que impede que uma autoridade coloque lá qualquer pessoa que ela queira vigiar para o sigilo dela ser quebrado?”, disse o advogado.
Ele alerta ainda para a possibilidade da decisão se tornar um instrumento de vigilância política. “Se não preciso justificar, eu posso colocar, em tese, o meu vizinho. Eu posso colocar uma pessoa que é o meu crítico, um dissidente político. Enfim, a justificativa não existindo, qualquer um pode entrar ali [no processo de investigação]. Pode servir como um instrumento de vigilância política, a dissidentes ou a críticos das autoridades”, apontou Marsiglia.
Perspectiva é de que ministros não sigam o voto da relatora
Em voto proferido em setembro de 2023, a então relatora, ex-ministra Rosa Weber, deu provimento ao recurso do Google. No entanto, um pedido de vista dos autos solicitado pelo ministro Alexandre de Moraes postergou o julgamento. O julgamento deve ser retomado com o voto de Moraes.
Em seu voto, a ex-ministra propôs uma tese. Para Rosa Weber, a ordem judicial tem que ser específica e individualizada. “À luz dos direitos fundamentais à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao devido processo legal, o art. 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) não ampara ordem judicial genérica e não individualizada de fornecimento dos registros de conexão e de acesso dos usuários que, em lapso temporal demarcado, tenham pesquisado vocábulos ou expressões específicas em provedores de aplicação”, apontou a ex-ministra.
Apesar do voto da relatora, na avaliação de analistas, o ministro Moraes pode negar o recurso do Google. Para o advogado Gabriel Cosme de Azevedo, especialista em direito digital, há uma margem de possibilidade para que a decisão seja favorável à quebra de sigilo. “Existem fundamentos que permitem tal entendimento”, afirma Azevedo. Segundo ele, os direitos de proteção à intimidade e à vida privada das pessoas não são absolutos e podem ser relativizados diante do confronto com outros direitos fundamentais.
Para Marsiglia, a tendência é de que, tendo em vista a forma geral que o Supremo tem se posicionado, o recurso do Google seja negado. “É difícil, hoje em dia, a gente fazer uma projeção como os ministros votarão, porque é sempre uma incógnita, infelizmente. Eles mudam demais de posição. Mas eu receio que o recurso do Google não seja provido pela maioria”, disse o advogado.
O posicionamento de Marsiglia é reforçado pelo advogado especialista em direito digital, Hélio Moraes. “O ministro [Alexandre de Moraes] tem adotado medidas não ortodoxas para fazer valer seus objetivos nos processos investigativos que conduz, passando por cima de diversos princípios do devido processo legal e ritos de investigação, sob um suposto interesse maior das investigações que conduz. Na minha visão, então, não apostaria no seguimento amplo do voto da [ex-]ministra, podendo ser aberta uma divergência, pois o voto da [ex-]ministra limitaria esse poder investigativo”, afirmou o advogado.
Entenda o recurso do Google ao STF
O caso teve origem após o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, ocorrido em 14 de março de 2018.
O Ministério Público do Rio de Janeiro, atendendo a pedido formulado pela autoridade policial, buscou o fornecimento do número de IP (protocolos de acesso à internet) e do Device ID (identificação do aparelho) de todos os usuários que tenham se utilizado do Google, entre os dias 10 e 14 de março, para realizar consultas dos seguintes parâmetros de pesquisa: “Marielle Franco”; “vereadora Marielle”; “agenda vereadora Marielle”; “casa das pretas”; “rua dos inválidos, 122” ou “rua dos inválidos”.
No recurso extraordinário (RE), protocolado em novembro de 2020 no STF, o Google questiona uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que decretou a quebra de sigilo de pessoas que fizeram pesquisas relacionadas à vereadora Marielle Franco antes do atentado que a matou.
Em agosto de 2020, o relator do caso no STJ, Rogerio Schietti, avaliou que a ordem judicial para a quebra do sigilo sobre pesquisa em determinada região e em período de tempo específico não se mostra uma medida desproporcional, nem representa risco à privacidade e intimidade dos usuários, já que se destina a apurar "crimes gravíssimos" cometidos por agentes públicos.
Ao STF, o Google cita que atendeu a diversas outras ordens judiciais proferidas no âmbito do caso Marielle, mas que, neste caso, são “pedidos genéricos e não individualizados, contrariando a proteção constitucional à privacidade e aos dados pessoais”.
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