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A imaginação moral ainda vive
| Foto: Ilustração: Fabio Abreu

No apagar das luzes de 2019, tivemos a triste notícia do falecimento de Gertrude Himmelfarb, aos 97 anos. A historiadora americana, que foi casada com Irving Kristoll, não é muito conhecida no Brasil, algo que a editoria É Realizações vem tentando endireitar. Por acaso eu tinha acabado a leitura de Ao sondar o abismo dias antes, e dela li também em língua portuguesa Os caminhos para a modernidade.

Neste clássico, Himmelfarb faz uma análise original das diferenças do Iluminismo, que não pode ser classificado como um só fenômeno. Ela tenta jogar mais luz sobre o lado britânico, que merece maior destaque e muitas vezes acaba ofuscado pelo radicalismo francês. De forma resumida, as principais diferenças poderiam ser definidas como a “ideologia da razão” (França), a “sociologia da moral” (Reino Unido) e a “política da liberdade” (Estados Unidos).

Enquanto a Revolução Americana produziu uma das nações mais livres e prósperas do mundo, a Francesa levou ao Terror jacobino e ao regime ditatorial de Napoleão. O “Templo da Razão” acabou se revelando um tanto irracional. Muitos foram sacrificados em nome da Liberdade. Em boa parte, argumenta a autora, isso se deve ao esquecimento de certas lições defendidas pelos pensadores britânicos, como David Hume, para quem a razão era facilmente dominada pelos afetos e paixões.

Numa era de individualismo exacerbado, de tantos buscando monopolizar a razão, e da velha arrogância racionalista de que é possível e desejável se criar um “novo mundo” a partir do zero, com base em conceitos abstratos paridos do conforto do escritório de “intelectuais” e abandonando completamente as antigas tradições, talvez seja mais prudente deixar o fervor revolucionário dos novos jacobinos de lado e escutar o alerta dos britânicos. Mais prudência, mais ceticismo, menos utopia e menos febre revolucionária.

Outro livro que li dela foi One Nation, Two Cultures, sobre a crescente polarização americana. O grau de ruptura interna é enorme, e às vezes o abismo que separa os dois lados parece intransponível. Espera-se que não, pois foi a capacidade de união em prol de objetivos e valores comuns que permitiu um contínuo avanço de nossa civilização. A historiadora usa a expressão “revolução cultural” para definir o que vem acontecendo no país desde os anos 1960, e que tem abalado os principais pilares do Ocidente e da América.

Os valores austeros da era vitoriana já foram o credo oficial dos ocidentais, especialmente dos anglo-saxões. Trabalho, empenho, temperança, disciplina, religiosidade, essas eram virtudes que, de certa forma, a imensa maioria aceitava como louváveis, ainda que fossem violadas na prática. A hipocrisia sempre foi a homenagem que o vício prestou à virtude. Mas ao menos eram características estimadas, almejadas, não ridicularizadas como hoje.

Há indícios claros de doenças morais por toda parte agora, como o colapso de princípios e hábitos éticos, a perda de respeito por autoridades e instituições, a ruptura das famílias, o declínio da civilidade, a vulgarização da alta cultura e a degradação da cultura popular. O resgate dos valores morais é parte fundamental para se preservar as liberdades, já que prosperidade material não garante progresso moral. Himmelfarb alertava para essa lição, esquecida por muitos “liberais”.

Por fim, em Ao sondar o abismo, a historiadora reúne ensaios que detonam o pós-modernismo, especialmente o modismo disseminado pela Escola de Frankfurt, que, brincando com palavras, atentou contra nossa capacidade racional e de diálogo. Como a tradutora Márcia Xavier de Brito explica no prefácio, os textos trazem como fios condutores “a arrogância e o empobrecimento espirituais das humanidades e da política na época contemporânea”.

Himmelfarb nunca deixou de acreditar na verdade e na realidade, e que há uma ligação entre elas, assim como há “uma conexão entre sensibilidade estética e imaginação moral, entre cultura e sociedade”. Ideias têm consequências, e as ideias perniciosas dos filósofos que “brincaram” de flertar com o abismo abalaram as estruturas da sociedade, deixando um legado terrível. O relativismo virou niilismo, a amoralidade se transformou em imoralidade escancarada, a irracionalidade se metamorfoseou em insanidade e a “libertação sexual” acabou como “perversidade polimorfa”. E tudo isso sob a excitação dos estudantes das humanidades!

No afã de manipular palavras e conceitos e “desconstruir” tudo, os pós-modernos se esqueceram de que a sociedade precisa caminhar sobre algum pilar. A filosofia já foi sinônimo de “amor pela sabedoria”, e foi transmutada em algo sem sentido ou propósito quando nos disseram que não há relação alguma entre ela e a virtude. Para os pós-modernos, a moralidade é uma forma de estética e não devemos levar a filosofia muito a sério. O resultado foi uma produção “filosófica” realmente sofrível, um espetáculo de pura retórica e muita verborragia que simulava uma profundidade intelectual onde havia apenas confusão mental.

Em sua área de atuação profissional o estrago não foi menor. O último sinal da deformação, diz ela, foi o ataque ao cânone com base na afirmação de que é dominado por “homens brancos mortos”. Os clássicos desapareciam, levando junto a noção humilde de que há enorme sabedoria acumulada no passado. Isso deu lugar não só à arrogância extrema, como também ao subjetivismo exacerbado. Não existem mais fatos que os historiadores, com todas as suas limitações, buscam revelar, para dar mais sentido à trajetória humana. Existem apenas interpretações pessoais e nada mais.

E com isso o papel relevante de indivíduos também some. “Sem vontade, sem indivíduos, não há heróis, mas também não há vilões”, escreve a autora. O relativismo apaga o protagonismo de indivíduos que fizeram a diferença para o bem, e também para o mal. Não por acaso os pós-modernos foram capazes de relativizar as atrocidades cometidas pelos comunistas.

O materialismo marxista é atacado pela autora também: “O ‘verdadeiro movimento’ da história, como verificamos, não é estimulado pela matéria, mas pelo espírito, pela vontade de liberdade”. E esta, em boa medida, depende dos valores disseminados na sociedade. Gertrude Himmelfarb não está mais entre nós, mas sua obra e suas ideias sim, da mesma forma que a imaginação moral que tanto ajudou a preservar.

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