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Em 2021, a Livraria do Senado lançou uma versão em quadrinhos do ECA, chamada “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em Miúdos”
Em 2021, a Livraria do Senado lançou uma versão em quadrinhos do ECA, chamada “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em Miúdos”| Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 32 anos no dia 13 de julho e, ao longo de três décadas, tem sido importante para a proteção da infância no Brasil. Mas especialistas apontam que há o que se aprimorar no ECA, principalmente com relação à distância entre o que diz a lei e a aplicação dela na prática. O enfrentamento à violência praticada contra crianças e adolescentes é um dos principais pontos em que ainda é preciso avançar. Além dessas questões, a redução da maioridade penal é outro tópico que há anos tem sido debatido pelos congressistas e pela sociedade brasileira.

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Desde 1990, o ECA sofreu várias alterações e teve aprimoramentos em pontos considerados críticos. Para Thiago Machado, advogado criminalista e professor de Direito Penal, apesar das mudanças que já foram feitas no estatuto, ainda falta uma resposta mais efetiva às ações que colocam a criança em risco.

“Não adianta só alteração da lei se não houver [resposta adequada] dos órgãos de fiscalização. Temos uma lei aprimorada e adequada, mas não há fiscalização, por exemplo em relação à proibição do trabalho infantil e ao combate aos maus-tratos. Não adianta nada um registro proibindo esse ato se não houver - por parte do Estado - uma fiscalização, para que não sofram esses tipos de mazelas”, afirmou Machado.

Já a secretária-adjunta dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Fernanda Monteiro, avaliou que houve avanços nessas três décadas. “Tivemos muitos avanços como a redução histórica da mortalidade infantil, o acesso à educação, avanço da escolaridade para a faixa etária que vai dos 4 aos 17 anos, e a redução do trabalho infantil", disse Fernanda.

Ainda de acordo com a secretária-adjunta do MMFDH, entre 1992 a 2016, o Brasil evitou que 6 milhões de meninas e meninos de 5 a 17 anos fossem submetidas ao trabalho infantil. "A gente percebe que os avanços foram inúmeros e não foram conquistados de uma forma solitária. Toda a sociedade pôde atuar [para isso]. A família, a sociedade e o Estado precisam estar juntos”, ressaltou a representante do governo federal.

Além deles, o juiz Alexandre Meinberg, titular da Vara da Infância e Juventude da Barra dos Garças (MT) e diretor-executivo da Associação Brasileira de Juristas Conservadores no Mato Grosso (Abrajuc-MT), destacou as questões relacionadas à adoção. “O ECA é uma evolução ao anterior Código de Menores, de 1979, e o que veio como avanço ao anterior é o procedimento de adoção. Não somente regulamentou como criou a guarda provisória e a facilitação da adoção. Também destaco a proteção dos interesses individuais da criança e do adolescente”, disse o magistrado. Leia abaixo mais sobre a questão da adoção no ECA.

A Lei Federal de nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o ECA, é um conjunto de normas que tem o objetivo de colocar a infância e juventude a salvo de toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão. De acordo com o estatuto, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, conforme o artigo 227 da Constituição Federal.

Em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada em 11 de julho, especialistas e deputados federais apontaram uma série de desafios para a implantação plena do ECA. “A gente precisa refazer esse pacto para ir além das palavras, além do texto da Constituição e da lei, para que se transforme em ações reais na sociedade”, disse o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Diego Bezerra, na audiência.

Redução da maioridade penal

Um dos pontos que há anos se discute relacionado ao ECA é a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Essa mudança foi defendida por 84% da pessoas que foram ouvidas pelo Datafolha, segundo levantamento feito em 2018. À época, foram ouvidos 2.765 brasileiros de 192 municípios.

Atualmente, até completar 18 anos, o jovem não é penalizado da mesma forma que um adulto. A Constituição e o Código Penal afirmam que os menores de 18 anos são “penalmente inimputáveis” e estão sujeitos às normas de legislação especial. Até essa idade, eles respondem por ato infracional e não por um crime.

"A Constituição Federal leva em consideração o critério biológico, para a questão da maioridade, por isso o menor de 18 anos, que é considerado menor de idade, tem essa proteção. Não se considera o critério psicológico se a pessoa tem ou não capacidade de entender o ato infracional", explicou o juiz Alexandre Meinberg.

Tramitam no Congresso Nacional várias propostas legislativas para a redução da maioridade. A Proposta de Emenda à Constituição, (PEC) 115/15, por exemplo, foi aprovada pelos deputados federais em 2015 e há sete anos aguarda análise no Senado.

Para o juiz, a legislação precisa mudar porque está desconectada da atual realidade. "O ECA dá a impressão de ser protetivo e infelizmente é. Hoje temos adolescentes que com 13 e 15 anos de idade tem plena capacidade de não somente entender o que acontece no mundo, como entender eventual caráter ilícito de uma ação que possa por ele ser praticado. Um adolescente de 16 anos tem a possibilidade de votar e escolher quem vai conduzir o rumo da nação e não pode responder da forma da legislação ordinária em relação a eventual ato por ele praticado", opinou Meinberg.

Por outro lado, Thiago Machado afirmou que a redução "esbarra na inconstitucionalidade" de qualquer tipo de iniciativa nesse sentido. “Se o Brasil não está dando conta de reinserir os adultos na sociedade - porque não há nos estabelecimentos prisionais uma efetiva iniciativa de buscar uma inserção, para os menores seria ainda mais complicado. Ele acaba sendo mais vulnerável e influenciável. Colocar os menores em um universo adulto seria temerário - estaria dando soldados para o crime e sobretudo para o crime organizado. Se não houver uma alteração em todo o sistema, a solução da redução não é a mais adequada”, avaliou o professor de Direito Penal.

Já secretária-adjunta dos Direitos da Criança e do Adolescente do MMFDH preferiu não opinar sobre a redução da maioridade penal. Fernanda afirmou apenas que “defende uma ampla discussão no Congresso”, e acrescentou: “temos que avançar para garantir o direito do adolescente”.

Enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes

Reduzir a violência contra crianças e adolescentes ainda é um grande desafio no Brasil. “Há um avanço da violência contra crianças e isso é notório. Quando a gente fala do direito da garantia à vida, a gente não consegue garantir outros direitos sem essa garantia”, disse Fernanda Monteiro, do MMFDH.

Segundo dados do ministério, 7 mil crianças morrem por ano no Brasil vítimas de violência e agressão. Somente neste ano aproximadamente 78 mil denúncias desse tipo foram registradas no país. Os números são do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do governo federal.

Ao fazer um balanço dos 32 anos do ECA na Câmara dos Deputados, o representante do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), Benedito dos Santos, afirmou que as ações de combate à violência de crianças e adolescentes ainda têm baixo impacto no país. Segundo ele, falta uma política de prevenção no Brasil. “Até hoje, não conseguimos estruturar uma política de prevenção. Isso nos constrange, porque não temos um sistema unificado da infância - não dá pra saber se está aumentando ou diminuindo. Precisamos trabalhar intersetorialmente, melhorar as coordenações, fortalecer as redes comunitárias, além de criar um novo pacto e um plano de prevenção das violências com boas práticas”, ressaltou.

O Unicef apoia a implementação da Lei 13.431/17 - sobre a escuta especializada -, que estabelece que deve haver assistência jurídica qualificada e psicossocial especializada para crianças e adolescentes vítimas de violência, com o intuito de evitar danos ou constrangimentos na tomada dos depoimentos. Pela lei, a vítima menor de idade deve ser ouvida apenas uma vez, em um local apropriado e acolhedor, poupando-a de reviver a violência sofrida.

Além de proibir a prática de castigos físicos, tratamento degradante e maus-tratos, o ECA também prevê a proteção de crianças e adolescentes contra qualquer tipo de violência, seja física, psicológica ou sexual.

Em maio deste ano, entrou em vigor a Lei 14.344/22, que endureceu as penas para crimes cometidos contra crianças e adolescentes e possibilita a aplicação de medidas protetivas às crianças vítimas de violência doméstica. A proposta foi batizada de Lei Henry Borel, em homenagem ao menino de 4 anos morto no ano passado no Rio de Janeiro. O padrasto e a mãe da criança respondem pelo crime.

Com o novo texto, o homicídio contra menores de 14 anos passou a ser considerado crime hediondo, ou seja, os autores não poderão pagar fiança para responder em liberdade. Os crimes contra crianças e adolescentes agora também são tratados como qualificados, com pena de prisão de 12 a 30 anos. Além disso, há a previsão de aumento da pena em dois terços se os autores forem parentes próximos, e em um terço se a vítima tiver algum tipo de deficiência que impeça que ela possa se defender.

Para Machado, “a lei trouxe medidas protetivas de urgência para os casos em que haja necessidade de efetiva atenção mais detida do Estado”. Mesmo assim, ele salientou que, se não houver fiscalização dos órgãos responsáveis e estrutura nas delegacias especializadas, conselhos tutelares, vara da infância, e Ministério Público - para que seja possível aplicar e afastar os eventuais agressores -, não adianta colocar no papel, pois não vai haver melhoria para a sociedade.

Violência e exploração sexual de menores

O ECA, em seu artigo 130, prevê a proteção de crianças e adolescentes contra abusos sexuais praticados dentro de suas casas, afastando o agressor e definindo penalidades específicas para quem praticar esse crime. No artigo 241, o texto cita a proibição da venda ou exposição de conteúdo pornográfico envolvendo a imagem de menores. Também é crime qualquer ato que submeta crianças ou adolescentes à exploração sexual.

No ano passado, foram registradas cerca de 100 mil denúncias de violação de direitos contra crianças e adolescentes. Dessas, 18 mil foram de violência sexual. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), os pais e padrastos foram os autores dos crimes em 40% dos casos. A pasta reconheceu que ainda há muito o que avançar nesse sentido. Apesar do alto número registrado em 2021, ele representa queda de 0,3% nas denúncias em comparação ao ano de 2019. Ou seja, existe o risco de que muitos crimes não tenham sido denunciados às autoridades competentes.

De acordo com um levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entre os anos de 2017 e 2022, 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos foram registrados no Brasil – uma média de quase 45 mil casos por ano. Desses, 62 mil vítimas eram crianças de até 10 anos.

A secretária do MMFDH salientou que “a sociedade precisa identificar os sinais que a criança dá em relação a uma possível violação voltada à questão sexual”. Ela cita a escola como um importante local para identificar os sinais de violência e ressalta que na pandemia a violência intrafamiliar aumentou.

“Mais de 80% dos casos das denúncias são intrafamiliares, segundo dados da Ouvidoria do ministério. É importante identificar um possível abuso. E nós como sociedade precisamos refletir, por que é dentro da casa que a maioria dos casos acontecem e na pandemia aumentou? As crianças ficaram um longo período dentro de suas casas, o que impossibilitou as investigações e o acompanhamento na escola”, destacou Fernanda Monteiro.

Para facilitar o acesso aos canais de denúncia, MMFDH disponibiliza o aplicativo Direitos Humanos Brasil, o WhatsApp (61-99656-5008) e um contato no Telegram (digitar na busca “Direitoshumanosbrasilbot”), que oferecem os mesmos serviços de escuta qualificada dos telefones Disque 100 e Ligue 180. “O aplicativo traz uma linguagem lúdica para que a criança possa identificar que algo errado está acontecendo com ela e ali ela aciona a ouvidoria nacional”, explicou a secretária. As denúncias também pode ser feitas pelo telefone 190 da Polícia Militar ou nas delegacias da Polícia Civil de cada estado.

Em relação à exploração sexual de vulneráveis, o advogado criminalista também avaliou que faltam políticas de prevenção e fiscalização mais efetiva para coibir esse tipo de crime. “O combate ao crime tem que se dar através de políticas públicas e de fiscalização efetiva. Há pontos de prostituição infantil em várias cidades, locais de menos condições financeiras, mas o Estado não faz nada para coibir esse tipo de atitude ou é muito frágil diante de todo cenário que se encontra. A proteção e implantação de políticas públicas para tirar o adolescente e punir os responsáveis pelo ato vem depois de prevenção”, criticou Machado.

Sobre as críticas, Fernanda disse que o MMFDH tem atuado fortemente contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. Ela citou uma ação realizada em maio deste ano, em parceria com o Ministério da Justiça, onde 300 crianças e adolescentes foram resgatados da exploração sexual. “Tivemos uma atuação muito importante durante a ação realizada em maio deste ano no Brasil inteiro. Temos que conscientizar a sociedade e trazer a criança para o centro e não permitir que sejam usadas por outros adultos”, ressaltou a secretária-adjunta dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Visando coibir qualquer crime contra criança e o adolescente, o juiz Meinberg destacou a Lei 13.441/17, que instituiu no ECA a infiltração policial virtual. “O ECA sofreu várias alterações legislativas no decorrer dos anos, e cito uma alteração de 2017 que possibilitou a infiltração de agentes de polícia para investigação de crimes contra dignidade sexual de crianças e adolescentes, seja por meio de filmagem ou qualquer meio. Hoje, por meio de autorização judicial, pode-se infiltrar policiais para facilitar a investigação”, comentou.

Processo de entrega voluntária para adoção

Uma lei que trouxe alterações importantes no ECA foi a 13.509/2017, chamada de “Lei da Adoção”, que incluiu a chamada entrega voluntaria da criança. Ela consiste na possibilidade da mãe encaminhar o filho ou o recém-nascido para adoção em um procedimento assistido pela Justiça, por meio da Vara da Infância e da Juventude.

O artigo 19 do ECA determina que as gestantes ou mães que demonstrem interesse em entregar seu filho para adoção deverão ser direcionadas para a Vara da Infância e Juventude, órgão que deverá realizar o processo para busca de família extensa (termo utilizado pela Justiça para designar parentes ou familiares próximos).

Pela lei, se não for encontrado parente apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente determinará sua colocação sob guarda provisória de quem estiver apto a adotá-la ou em entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.

Meinberg mencionou que a entrega voluntária é um dos pontos que deveria ser aprimorado no ECA. Segundo ele, o processo precisa ser menos burocrático e mais conectado à realidade atual.

"A crítica é se uma pessoa não quer a criança - e eu vejo com maus olhos que seja encaminhada para adoção por parte de algum familiar. Se ela já manifestou ao longo da gestação o desejo de doar, então sequer deveria ter contato com a criança após a decisão. Deveria ter um prazo mais exíguo para desistência. A mãe acabou de ter um parto, ainda está no estado puerpério e tem que marcar uma audiência para falar se quer ou não desistir. E o prazo de 6 meses para poder desistir da adoção também gera consequências até para a criança", opinou o juiz.

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