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O Supremo Tribunal Federal não executou a determinação de soltura de Cleriston Pereira da Cunha, que acabou falecendo na Papuda. O documento foi enviado pelo MPF em setembro.
O Supremo Tribunal Federal não executou a determinação de soltura de Cleriston Pereira da Cunha, que acabou falecendo na Papuda. O documento foi enviado pelo MPF em setembro.| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

A morte de Cleriston Pereira da Cunha, de 46 anos, no Complexo Penitenciário da Papuda poderia ter sido evitada se os trâmites jurídicos fossem devidamente seguidos. Diversos abusos podem ser encontrados em todo o processo. O Ministério Público Federal, inclusive, já tinha se manifestado pela soltura do preso em setembro. Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) ignorou os argumentos do MPF e as alegações da defesa.

Por ilegalidades processuais mais superficiais, traficantes do PCC foram soltos após decisões de ministros do STF. A própria condenação do presidente Lula foi anulada pela Corte por considerar que houve erro na competência de quem deveria conduzir o processo. Mesmo com essa jurisprudência, o STF ignorou os oito pedidos de soltura apresentados pelo advogado de defesa do empresário baiano.

A Gazeta do Povo conversou Eliana Calmon, jurista e magistrada brasileira, que compôs o Superior Tribunal de Justiça até 2013. “O STF não obedece aos critérios de seguir primeiro a uma investigação que fica a cargo do Ministério Público Federal”, afirma Calmon. Segundo ela, o problema gravíssimo está relacionado às diversas condutas do Supremo.

1. STF não é o juiz natural do caso

Os réus dos atos de 8 de janeiro deveriam ter sido encaminhados à Justiça Federal, visto que os crimes dos quais são acusados ocorreram em área federal. Como os fatos se deram no Distrito Federal, as ações penais deveriam, por tanto, ser analisadas pelo primeiro grau do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Não foi isso o que aconteceu. A Justiça Federal, à época do início dos processos, afirmou que não seria competência dela e destinou os processos ao STF. Com o argumento de possível envolvimento de parlamentares, o STF atribuiu a competência a si mesmo. Mas, até o momento, o Ministério Público Federal sequer denunciou a participação de algum parlamentar nos atos de 8 de janeiro. O que aponta que, sem ao menos uma ação penal envolvendo parlamentares, o processo de Cleriston não deveria ser conduzido pelo Supremo.

2. Não houve individualização de conduta

De acordo com a Constituição Federal, as pessoas devem responder por suas condutas de maneira individualizada. Porém, não foi essa a linha adotada pela Corte. O STF usou a tese de “crimes multitudinários” em todas as ações penais referentes ao 8 de janeiro já julgadas. O crime multitudinário considera que houve uma influência entre as pessoas que estavam ali presentes, incitando todos os presentes a cometerem os delitos.

De acordo com o Código Penal, os crimes provenientes de multidão em tumultos deveriam atenuar a pena. A lei considera que as infrações podem ter sido cometidas devido a reação dos envolvidos diante de comportamentos alheios. Normalmente, a pressão gerada por ambientes pode fazer com que haja movimentações rápidas e desordenadas.

Como já mostrado pela Gazeta do Povo, os advogados de defesa criticaram a tese adotada pelo STF. Um dos argumentos é que havia diferentes condutas das pessoas presentes. As imagens das câmeras de segurança dos prédios públicos mostram, claramente, que enquanto manifestantes depredavam o patrimônio público, outros procuravam conservar os itens.

3. Não havia justificativa para prisão preventiva

“A prisão preventiva só existe naqueles casos que estão estabelecidos em lei”, comenta Eliana Calmon. Ela explica que a prisão preventiva se dá quando o réu está tumultuando o processo ou quando tem o risco de fugir. Outros fatores que podem indicar a prisão preventiva é quando o crime causou comoção social ou que o acusado gere um sentimento de ameaça na sociedade, o que tende a acontecer em crimes de natureza gravíssima.

“Mesmo em crimes em que há alguma gravidade, mas que não ocorra nenhuma dessas quatro hipóteses, essas pessoas não devem ficar presas”, complementa. A justiça ainda estabelece algumas condições para os réus que respondem processo criminal em liberdade, como não se afastar do local de residência ou se apresentar sempre que chamado.

Apesar da legislação não indicar a prisão preventiva ao caso de Cleriston, ele foi mantido na Papuda por quase um ano. O empresário era réu primário e a falta de antecedentes criminais já deveria favorecê-lo. Além disso, ele não apresentava riscos à sociedade, possuía endereço fixo e cooperava com o processo criminal.

4. Não houve análise dos oito pedidos de soltura por questões de saúde

O Código de Processo Penal determina que a prisão preventiva de detentos com mais de 90 dias seja reavaliada. Diante disso, Bruno Azevedo de Sousa, advogado do réu, apresentou oito pedidos de soltura. Em todos eles, Azevedo de Souza apresentava o quadro de saúde delicado de Cleriston.

Em 2022, Cleriston chegou a ficar internado 33 dias por problemas no coração provenientes da Covid-19. Um relatório médico anexado a um dos pedidos de soltura solicitava que o réu realizasse exames necessários para que tivesse a saúde assegurada. O advogado deixava claro que a falta de exames médios e a permanência em local insalubre poderiam “acarretar em complicações fatais para o paciente”. Os pedidos não foram analisados pela Corte.

Em 2018, o próprio Supremo determinou que o tratamento de doença grave é motivo para prisão domiciliar humanitária. A decisão se deu após a análise do caso do ex-deputado estadual Jorge Picciani, que cumpriu prisão preventiva em casa ao apresentar o diagnóstico de câncer de próstata.

“Se, por um acaso, oito pedidos fossem feitos pela defesa e o juiz não fizesse uma apreciação, dentro de, no máximo, 30 dias imediatamente poder-se-ia recorrer a instância superior”, explica Eliana Calmon. Ela completa dizendo que “depois do Supremo não há mais ninguém a que se possa recorrer”.

5. MPF recomendou a soltura em setembro

O Ministério Público Federal deu parecer favorável à liberdade provisória de Cleriston em 1º de setembro. Carlos Frederico Santos, subprocurador-geral da República, deixou claro que o réu não trazia mais riscos à ordem pública e nem à possibilidade de interferência na coleta de provas. Apesar disso, o STF não se manifestou.

“Se ele [MPF] determinou que aquela pessoa deveria ser liberada e aquela pessoa não foi liberada, está acontecendo efetivamente uma grande ilegalidade. Se fosse em qualquer outro tribunal, um habeas corpus seria decidido imediatamente em favor à liberação desse preso”, diz a magistrada.

Eliana Calmon explica que o Ministério Público é, dentro da legalidade, o “dono da ação penal”. Pois, o MP é o responsável por solicitar os serviços do judiciário, quando considerar necessário. “Como o STF é o último órgão e não tem a quem recorrer em relação ao habeas corpus, então, [Cleriston] ficou preso até morrer”, complementa.

“A única força jurídica escrita na Constituição que pode pôr um limite nas ilegalidades e irregularidades cometidas pelo Supremo Tribunal Federal é o Congresso Nacional. Isso não está acontecendo”, conclui Eliana Calmon.

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