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José Antônio no depósito em que está guardado o acervo no qual trabalhou por quase quatro décadas: noites  sem dormir. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
José Antônio no depósito em que está guardado o acervo no qual trabalhou por quase quatro décadas: noites sem dormir.| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Jornais não se resumem a usinas de notícias – são também espaços onde se produzem fotografias em escala chinesa. Faça as contas. Na Gazeta do Povo, cada fotógrafo cumpre pelo menos três pautas diárias, para as quais faz pelo menos de 20 cliques, cada uma. Por baixo, é igual a 60. Multiplicado por 15 profissionais, chega-se a 900 imagens numa única segunda ou terça-feira, 27 mil num mês. Projete-se isso em anos, com o agravante de que em momentos de fatos extraordinários esses cálculos não servem para nada: tudo se eleva ao cubo.

FOTOS: Um acervo à espera

A equação é impossível de resolver, mas serve para dar uma ideia da quantidade de negativos e de cópias impressas que formam a maior e mais importante coleção de fotojornalismo do sul do país, oriunda dos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná. A Gazeta do Povo adquiriu as duas empresas então do Grupo Paulo Pimentel em dezembro de 2011 – e com elas seu superlativo acervo fotográfico, hoje acondicionado em nada menos do que 2.939 caixas. Juntas, formam um edifício de pelo menos quatro andares, altura e largura acumulada ao longo de seis décadas. Quantas imagens? Não menos do que 19 milhões.

Última Hora

Os números deixam a vista turva, mas nada que se compare ao conteúdo. Nenhum outro jornal paranaense – nem O Dia, nem O Diário do Paraná e nem mesmo a Gazeta do Povo – conseguiu produzir um acervo tão valioso quanto o das siamesas O Estado-Tribuna. Surgidos respectivamente em 1951 e 1957, os dois “periódicos”, como se dizia, nasceram no embalo da modernização da imprensa brasileira. São contemporâneos, por exemplo, do Última Hora , de Samuel Wainer, também de 1951, um diário popular, mas escrito pela nata da imprensa brasileira (Nelson Rodrigues e Antônio Maria, para citar dois), com as técnicas de edição da imprensa americana e a excelência gráfica dos vizinhos argentinos, que à época deviam gargalhar da feiúra dos jornais brasileños.

Não bastasse ter se espelhado no Última Hora, ao qual a ditadura reservou pauladas e cacetadas, os dois diários paranaenses seguiram acumulando glórias pelos anos 60, 70, 80..., o que incluía produzir fotos de qualidade. Mais que um acervo, formam um patrimônio. Não há episódio entre 1951 e 2011 que não estejam ali bem documentados – da hospedagem dos craques Bellini e Djalma Santos pela cidade; passando pelas transformações urbanísticas em Curitiba a partir de 1972, a Geada Negra de 1975, as Diretas Já e as façanhas de criminosos famosos, como Arlete Hilú e Evinha do Pó.

Para despeito dos fotógrafos de outros jornais, que viviam na base do conta-gotas, Estado e Tribuna tinham o luxo de fotos assinadas por um time que nenhuma outra empresa local pôde bancar. Ponha-se na lista Edison Janssen, Américo Vermelho, Nani Góis e gente que bateu cartão ali por um tempo curto, mas sem nunca deixar de exibir o feito em seu currículo. É o caso da fotógrafa campo-mourense Vilma Slomp. A lista toda é de se beliscar. O mesmo vale para o reportariado, do qual fez parte o bamba Laurentino Gomes, Franscisco Camargo e uma geração de mulheres, como Terezinha Cardoso, Vânia Welte e Tonica Chagas. Outra lista longa.

Sorte e juízo

Não que outros jornais paranaenses tenham sido privados acervos dignos de um museu exclusivo. Não tiveram é sorte ou juízo. Da coleção de fotos de O Dia – um marco da primeira metade do século 20 – não se tem notícia. Só palpite. Era de praxe, quando um jornal fechava, que suas fotos seguissem para qualquer outra empresa do ramo, junto com os exemplares encadernados, as máquinas de escrever e os repórteres que não ganharam o carimbo da despedida. Nos arquivos onde desembarcavam, as fotos eram misturadas, sem que soubessem quem foi o autor, qual o nome do retratado e em que dia e ano aquilo aconteceu. A coleção do Diário do Paraná (1955-1983), do grupo Diários Associados, passou por esse esquartejamento. As páginas impressas estão a salvo – na Biblioteca Pública e na própria Gazeta; as fotos não tiveram a mesma felicidade.

Quanto ao acervo em preto e branco da Gazeta do Povo, é tragédia à parte. A produção da primeira metade do século passado era enxuta e, a moda de outros diários da época do clichê, foi devorada por fungos ou sacrificada por arquivistas homicidas. Quando as técnicas de conservação fotográfica avançaram, a empresa amargava dias ruins, o que se prolongou por quase toda a década de 1960. A saída era usar fotos do governo – como as do brilhante Sperandio Domingos Foggiato (hoje no acervo Cid Destefani, que soma mais de 500 mil imagens) – ou repetir a mesma foto por anos a fio, como se o personagem dormisse no formol. O retrato do craque Evílton Carazzai, do Coxa, um Kaká de antanho, foi repetida por dois anos, o que colaborou para perpetuar sua aura de galã.

Mesmo na penúria, entre 1962 e 1976 – ano em que a crise deu trégua – a Gazeta contava com quatro fotógrafos, um deles, com folga, dos mais talentosos de toda a história do fotojornalismo paranaense: Francisco Gortz, o Chicão. A data não é precisa, mas de acordo com relato do fotógrafo Urutides Borges – octogenário e decano do fotojornalismo no estado – por volta de 1978 uma chuva forte derrubou o teto do departamento fotográfico, arruinando maior parte do acervo que, se não podia competir com o concorrente, tinha lá sua importância.

“Batata”

Enquanto O Dia, Diário e Gazeta tropeçavam em contratemos, O Estado do Paraná e Tribuna permaneceram produzindo imagens e, o melhor, arquivando. Uma de suas maiores proezas foi ter encontrado um diretor de redação entusiasmado com a coleção e um jornalista disposto a cuidar dela. Eram tio e sobrinho – Mussa José Assis (1944-2013) e José Antônio Assis Zerbetto, o “Batata”. Mesmo descontando os estágios dos dois em outros veículos, foram quase quatro décadas de trabalho em prol do acervo, o que explica seu tamanho e integridade.

Em 2011, ao se aposentar no Grupo Paulo Pimentel, José Antônio ficou noites sem dormir. Temia pelo futuro do acervo – que quase todo tem sua caligrafia nos fichários. Depois dele, houve perda de organização e pequenos saques. Há uma semana, o jornalista arquivista viu as caixas guardadas num depósito profissional e se emocionou ao abrir um dos lotes – estavam lá as marcas que deixou em caneta vermelha, sua técnica para se achar em meios aos rabiscos, deixados no verso, pelos diagramadores. “Era uma briga com seguir todas as informações antes de arquivar. Eu corria atrás. Mas era uma alegria – a edição do dia seguinte começava sempre na sala do acervo, onde o pessoal se reunia para se informar sobre a pauta que tinha recebido”, conta.

O reencontro foi o que bastou para que se alistasse entre os que querem trabalhar pela disposição do acervo ao público, via internet, com as devidas legendas e identificação dos autores. O trabalho – em estágio inicial – está sendo capitaneado pelos historiadores Vidal Costa e Tatiana Marchette. A captação de recursos pela Lei Rouanet é da produtora cultural Luciane Passos. Paralelo, a preservação do acervo – a cargo da Gazeta do Povo e da Tribuna – angaria entusiastas. Antes mesmo do encaixotamento, o jornalista de esportes André Pugliese, da Gazeta, publicava joias do acervo em seu blog. De fora da casa, o assunto mobiliza gente como o fotógrafo e curador Orlando Azevedo – ele mesmo dono de acervos, como o do veterano Alfredo Weiss. A movimentação ganha corpo. Alardear que esse patrimônio existe é o melhor que se pode fazer agora.

  • Projeto na Lei Rouanet, em fase de captação, vai listar e escanear o acervo fotográfico da editoria de esportes.
  • Acervos oficiais tendem à estética do cartão-postal. Acervo de fotojornalismo destaca o cotidiano e os anônimos da cidade.
  • Despedida do zagueiro Bellini no Atlético, em Atletiba de julho de 1969. À direita, Orlando Silva, a “voz das multidões”.
  • Criança torcedora flagrada em Atletiba no Belford Duarte, em setembro de 1974.
  • Duas lendas do futebol paranaense: Capitão Hidalgo e Sicupira, em Atletiba de 1973.
  • Jogador do Atlético recebe atendimento no vestiário do Joaquim Américo, em Atletiba de 1959.
  • Atletiba disputado no Belford Duarte, ainda sem arquibancadas suspensas, em janeiro de 1958.
  • Craque do Coritiba, o lateral-esquerdo Nilo posa com a família após convocação para a seleção brasileira, em 1968
  • Vista panorâmica do Belford Duarte, estádio do Coritiba, em Atletiba de 1958.
  • Movimentação na Rua Mauá em Atletiba de 1976
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