Apresentada no último dia 19 de agosto, uma proposta de substitutivo de lei de autoria do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), com o apoio do presidente de comissão especial sobre o tema, Paulo Teixeira (PT-SP), tem sido vista como tentativa de viabilizar o cultivo da Cannabis no Brasil com finalidades que extrapolam o uso exclusivamente medicinal da planta. Os benefícios de medicamentos à base de maconha para o tratamento de doenças não é um tema pacificado pela ciência.
Enquanto o teor do projeto original, PL 399/2015, de autoria de Fábio Mitidieri (PSD-SE), prevê apenas a comercialização de medicamentos à base de Cannabis (assunto sobre o qual a Anvisa já havia deliberado; leia abaixo), o substitutivo apresentado por Teixeira tem finalidade diferente ao viabilizar o "cultivo, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, comercialização, importação e exportação" da planta.
O documento ainda ampara o "uso medicinal irrestrito" e uso não medicinal, sob critério único: em sua fórmula, produtos precisam apenas ter teor inferior a 0,3% do chamado Tetrahidrocanabinol (THC), componente responsável pelos efeitos psicoativos imediatos da maconha.
Procurada pela reportagem, a assessoria do deputado Paulo Teixeira não respondeu ao contato da Gazeta do Povo.
Cerco ao debate e lobby
Além de o substitutivo não ter tido parecer apresentado ou aprovado em comissão especial, o autor da proposta realiza um evento técnico para discussão do tema nesta terça-feira (1º). Foram excluídos do debate inúmeros representantes que têm relação com o assunto. Teixeira recusou, por exemplo, sugestão do deputado Diego Garcia (PODE-PR) para incluir no evento uma lista de especialistas e até mesmo a ministra Damares Alves, a secretária da Família, Angela Gandra, e o secretário do Ministério da Saúde, Raphael Câmara.
"Embora a Comissão Especial que trata sobre o projeto estivesse debatendo e discutindo o tema, por meio das audiências públicas, o relator não apresentou parecer dentro da Comissão, o que implica também que nenhum texto foi discutido, votado ou aprovado", afirma o deputado. "Portanto, não houve consenso e nem discussão suficiente na comissão. Estão querendo atropelar as atividades da Comissão Especial e provavelmente colocar em votação às pressas, como geralmente fazem com temas sensíveis como esse".
A Anvisa já havia deliberado sobre o tema quando, em 2019, vetou uma resolução que propunha permitir a plantação da maconha no país, ainda que para fins exclusivamente medicinais e de pesquisa. Por outro lado, a agência aprovou de forma unânime resolução que trata do registro e venda de "produtos" à base de Cannabis sativa. Os itens deveriam ser importados e não poderiam ser classificados como medicamentos, mas como produtos, pela ausência de estudos a respeito de sua eficácia, estabeleceu a Anvisa.
"O lobby da maconha não está atrás daqueles que usam a maconha uma vez ao mês, recreativamente. Está atrás dos 30% de dependentes que consumirão 90% da maconha vendida. A questão é financeira, como é a questão do tabaco e álcool e agora do cigarro eletrônico. Estas indústrias não medem esforços para o aumento de venda e para viciar a população envolvida", afirma João Becker Lotufo, doutor em Pediatria pela USP e representante da Sociedade Brasileira de Pediatria nas ações de combate ao álcool, tabaco e drogas.
Para o senador Eduardo Girão (Pode-CE), há uma tentativa de se utilizar de um momento de fragilidade no país para aprovar o projeto. "Nosso foco deve estar na saúde pública, pós-pandemia, em emprego. Mas eles estão querendo aprovar isso sem debate nenhum", afirma. "É covarde fazer isso em um período como esse".
"Não importa quantas gerações a gente possa perder, o objetivo do lobby do narconegócio é ganhar dinheiro. Eles são sorrateiros. Tentaram aprovar isso durante a Copa do Mundo no Brasil, em 2014, também época de campanha em que o Congresso estava em recesso branco", afirma.
"Conseguimos barrar a manobra na última hora, através da Comissão de Direitos Humanos no Senado. Quem está por trás disso quer faturar, e se utiliza de associações que têm vontade legítima e pura de ajudar crianças".
Em 2019, Girão inclusive apresentou uma proposta que obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a fornecer gratuitamente remédios à base exclusivamente de canabidiol para pacientes que dele necessitem. A sugestão do senador, contudo, não teve o mesmo acolhimento que o PL 399.
"Por que nosso projeto não caminhou no Congresso, já que é questão de saúde pública? Isso esvazia o argumento de que há uma preocupação por parte dos deputados na saúde dessas crianças que precisam do medicamento. Esse não é o interesse deles", afirma Girão.
Leia também: Maconha medicinal não existe
Maconha medicinal
Diferentemente do que determinou a agência reguladora, Teixeira fala em "medicamentos canabinoides". O termo é visto por interlocutores como eufemismo para tentar, mais uma vez, emplacar a dita "maconha medicinal" - termo equivocado cujo objetivo é insinuar que o uso irrestrito da planta seria benéfico.
João Becker Lotufo, doutor pela USP, explica que há uma confusão proposital envolvendo o termo maconha medicinal. "O termo 'maconha medicinal' confunde a cabeça da população. Não dizemos heroína medicinal e, sim, morfina", explica. "Ambas vêm da mesma planta, mas a morfina usada em todos os prontos-socorros é uma droga bem estudada e conhecida. A heroína, por sua vez, é droga bastante conhecida e não temos confusão com estes termos".
"É necessária uma clara separação em 3 aspectos: 1) o real uso medicinal do canabidiol, 2) o campo para estudos clínicos sérios e bem elaborados, aprovados por comitês de ética em pesquisa e 3) a forma da sociedade lidar com a planta maconha e seus demais substratos", lembra Marcelo Von der Heyde, médico diretor-secretário da Associação Paranaense de Psiquiatria (APPSIQ).
Segundo o especialista, "existe método nesta mistura, para gerar confusão entre os temas".
"Inclusive, usam os casos dramáticos em que houve uma indicação correta do canabidiol e efetiva melhora dos pacientes como bandeira para a legalização da maconha. Criam uma confusão com o termo maconha ou cannabis medicinal. Não há nenhuma evidência científica séria que corrobore com a alcunha deste termo", afirma.
Não há dúvida, por outro lado, no âmbito científico, quanto às consequências e riscos, muitas vezes permanentes, decorrentes do uso recreativo da maconha. "Cada vez mais a percepção de risco do uso de maconha tem reduzido, e consequentemente aumentado o consumo, principalmente nos jovens, justamente a população com maior risco dos efeitos deletérios da maconha", diz Von der Heyde.
Uso irrestrito
A minuta apresentada pelo deputado prevê que poderão obter autorização para atividades de "cultivo, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, comercialização, importação e exportação" de produtos à base de Cannabis pessoas jurídicas, instituições de pesquisa e associações de pacientes.
Ainda, não haveria restrição quanto aos critérios para a "prescrição de medicamentos canabinoides, desde que seja feita por profissional habilitado e com anuência do paciente ou responsável legal [...] os medicamentos canabinoides poderão ser produzidos e comercializados em qualquer forma farmacêutica".
"Na minha visão, o substitutivo torna o PL um verdadeiro facilitador do uso recreativo da maconha no Brasil, especialmente por causa do art. 20, parágrafo único, que permite que o uso medicinal seja irrestrito - o que permite, na prática, o uso recreativo", afirma Diego Garcia.
"É uma brecha enorme para que a maconha possa ser comprada por usuários recreativos, bastando para tanto que estejam munidos de receita médica", aponta a Frente Parlamentar de Doenças Raras e Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, em nota. "A receita médica pode ser para tratar qualquer tipo de condição [...] e que este problema era evitado no texto do projeto original, por meio da expressão 'desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso'".
Cultivo a céu aberto e uso industrial
O cultivo de Cannabis poderia ser destinado à pesquisa para o desenvolvimento de medicamentos, bem como para o desenvolvimento de produtos sem fins medicinais, como, por exemplo, cosméticos, produtos de higiene pessoal, celulose, fibras, produtos de uso veterinário sem fins medicinais e outros, "desde que as suas formulações contenham de níveis de THC iguais ou inferiores a 0,3%".
As condições mínimas de controle previstas pelo documento seriam: 1) cota de cultivo, com finalidade pré-determinada; 2) rastreabilidade da produção, desde a aquisição da semente até o processamento final e o seu descarte; 3) plano de segurança, visando a prevenção de desvios e a 4) presença de um responsável técnico a fim de garantir a aplicação de técnicas de boas práticas agrícolas; ele ainda seria responsável por controlar o teor de THC.
"No pronto socorro pediátrico do Hospital Universitário da USP, já atendemos intoxicações em crianças por drogas, desde álcool até cocaína. A maior parte acidentais", conta Lotufo. "Nos EUA, depois da liberação da venda da maconha em alguns estados, dobrou-se a intoxicação tanto em adultos como crianças, inclusive menores de 5 anos de idade. Se leva-se pirulito, bala, bolo, refrigerante com maconha para casa, e a chance de intoxicação aumenta".
A planta poderia ser cultivada em ambiente aberto, desde que o perímetro de plantação fosse provido de cerca elétrica e de "sistema de videomonitoramento em todos os pontos de entrada, com restrição de acesso, sistema de alarme de segurança, a fim de impedir o acesso de pessoas não autorizadas".
"A folha da Cannabis é igual, com THC ou sem THC. Se for possível plantio a céu aberto da Cannabis, o que vai diferenciar uma de outra? Se o objetivo é o uso medicinal, por que querem liberar o uso industrial? É um caminho, sim, de liberação da maconha. Uma coisa vai puxando a outra", defende o parlamentar.
Também segundo a proposta, deverão ser alvo de fiscalização apenas "plantas com teor de THC superior a 1%, bem como serão consideradas plantas de Cannabis não-psicoativa para fins medicinais, aquelas com teor de THC igual ou inferior a 1%, com base no seu peso seco".
O documento sequer menciona as possíveis sanções aplicáveis a quem não seguir os requisitos do cultivo, deixando isso a cargo de órgãos reguladores.
Teor de THC e uso não medicinal
Segundo Marcelo Von der Heyde, os critérios referentes ao THC previstos no documento não garantem a segurança do uso. "A concentração de 0,3% de forma alguma deveria ser critério para a definição de ser psicoativo ou não. A ingestão de grande quantidade de um extrato com este teor, certamente terá efeito psicoativo", afirma.
Em geral, defensores do uso medicinal da Cannabis apelam para a eficácia do canabidiol, apenas um entre os mais de 400 componentes da planta, e que não teria efeitos psicoativos. "Existe uma questão bem clara sobre este tema que é: apenas para o canabidiol existe evidência científica de qualidade para ser chamado de medicinal, e em situações específicas, principalmente neurológicas como síndrome de Dravet e epilepsias resistentes ao tratamento", explica Von der Heyde.
"Mas o canabidiol tem sim um efeito psicoativo, apenas é diferente do THC, que é o principal responsável pelos efeitos psicoativos imediatos da maconha. Da mesma forma, apesar de relativa segurança, o canabidiol não é isento de riscos de efeitos adversos e que já está bem estabelecido tem importantes interações farmacológicas com diversos medicamentos comuns", continua o médico.
"Existe uma possível exceção, justamente com o canabidiol em alta concentração, por este ter uma provável ação antagonista ao THC e esta associação parece ser benéfica em alguns casos, mas a lei não fala claramente sobre este tema. Deixa brecha para ser criado um extrato com outras substâncias menos ativas, apenas como m veículo para conseguir o efeito do THC", diz.
O especialista também chama a atenção para o fato de que o uso e prescrição dos produtos devem "obedecer a um rigor clínico e científico idêntico ao feito para os demais medicamentos". A grande quantidade de componentes da planta e as interações complexas entre essas substâncias tornam o estudo da erva uma tarefa complexa. E os efeitos dos tratamentos dependem da concentração de cada composto nos medicamentos, sobretudo do tetrahidrocanabinol (THC), responsável por provocar "euforia" mas que também pode induzir psicoses e outros problemas.
Até hoje, há pesquisas conceituadas que revelam existir, sim, evidências de benefícios, no entanto, os indícios são pouco encorajadores. Alguns estudos, inclusive, classificam os efeitos como "marginais" e, em outros casos, alertam que o uso de medicamentos à base da erva podem ser muito prejudiciais. Leia, aqui, sobre pelo menos 3 pesquisas que contestam o uso medicinal da maconha.
"Alguns estudos mostraram resultados preliminares favoráveis em alguns estudos com modelos animais, relatos de caso e estudos abertos. Porém quando vai para o ensaio clínico duplo-cego randomizado, modelo de estudo padrão-ouro, raramente a expectativa se confirma ou são resultados muito modestos", afirma Von der Heyde.
Para o deputado paranaense Diego Garcia, o dispositivo é uma espécie de manobra. "Sabendo que a maior parte da população, de certa forma, ainda tem uma forte rejeição à maconha, porque se trata de uma droga com consequências terríveis para as pessoas, para as famílias e para a sociedade, os grupos que querem sua legalização buscam, primeiro, a permissão para esses outros fins", defende. "Assim, a sociedade vai aos poucos mudando a percepção acerca da maconha, que passa de uma droga perigosa para um produto seguro e com múltiplos benefícios, o que sabemos não ser verdade".
"A liberação de prescrições e o uso sem respaldo científico acarretará em aumento dos problemas causados pelas drogas. E no caso da maconha, sua lesão é irreversível, como perda da memória, atraso escolar, caminho para outras drogas e lesão cerebral com ou sem surto psicótico, principalmente quando o seu início for antes da formação do cérebro, aos 21 anos", finaliza João Lotufo. "Cada vez mais se fala em liberação da maconha sem se fazer as advertências do seu risco".
*Leia, abaixo, o substitutivo ao PL:
*Leia, abaixo, a nota das frentes parlamentares
A minuta de substitutivo ao Projeto de Lei 399/2015 é de autoria do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), e não do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), como estava na primeira versão desta matéria. Paulo Teixeira, presidente da comissão especial sobre a proposta, apoia o texto e o considera "um avanço".
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