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Os expulsos

Norberto Paulista resistiu o quanto pôde, mas acabou vencido pelo cansaço. Ele tinha um próspero comércio de secos e molhados numa região remota, mas sem concorrência, em Cerro Azul, no Vale do Ribeira. Diversas vezes a CBA botou preço na propriedade. Norberto recusou todas. Era preciso evacuar a área para o reservatório da hidrelétrica Tijuco Alto, então a CBA foi comprando as terras vizinhas. Sem freguesia, a mercearia morreu à míngua. No sobrado às margens da estrada poeirenta hoje funciona a Drink’s Boate Show, das irmãs Carmenluci e Maricléia Prado Gonçalves.

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A privatização das águas

A construção da barragem de Tijuco Alto suscita a discussão em torno do uso e da finalidade do rio e da energia elétrica produzida no Brasil. "Quando você represa o rio, há um gestor do espaço e da água, e isso é privatização", diz a coordenadora Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa. "Esta hidrelétrica não é uma necessidade do Paraná ou de São Paulo, é uma necessidade da CBA (Companhia Brasileira de Alumínio)", enfatiza.

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Seu Vicentinho não sabe nem a perna do "a", mas os 100 anos de vida completados dia 1.º de março lhe deram outros conhecimentos que não se aprende em banco de escola. Ele domina os segredos da longevidade, sabe o tempo certo de colher e de plantar, conhece o poder curativo das plantas, mas não consegue compreender a gana do homem em desafiar a natureza. Nunca se importou muito com isso, até o problema bater à sua porta. E o problema é dos grandes. Seu Vicentinho é uma pedra no caminho da gigante empresarial Votorantim, que há 18 anos tenta erguer uma usina hidrelétrica no rio vizinho, o Ribeira de Iguape.

Vicente Ribeiro de Lima e a Votorantim estão em lados opostos de uma batalha prestes a eclodir no coração da Mata Atlântica. Numa ponta deste cabo-de-guerra estão ambientalistas, índios, caiçaras, religiosos, quilombolas; na outra despontam prefeitos, deputados, vereadores, comerciantes e outros simpatizantes da obra. Cada grupo tenta, a seu modo, influenciar o parecer definitivo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está na iminência de emitir sobre a construção da usina, que causará impactos diretos em três municípios do Paraná e em dois de São Paulo.

Metido no grupo dos contra, Vicentinho não quer o mesmo fim de vida de tantos ribeirinhos desalojados que agora vivem em favelas de Cerro Azul e da região metropolitana de Curitiba. Ele nasceu num povoado do Vale do Ribeira e fincou raízes em outro, a Ilha Rasa. Ali casou, enviuvou, casou de novo, teve quatro filhos com a primeira mulher, mais dois com a segunda, além de um nascido "no dia curto", morto 8 dias após o parto. Mora na tapera erguida em 1979 com ajuda do filho Darci, de 54 anos. O chão é de terra batida, o teto de telha de barro sustentado por troncos de madeira, as paredes de gravetos revestidos com barro vermelho.

Nunca teve luxo, só o bastante para chegar aos 100. "Em que outro lugar ele viveria tanto?", indaga Darci. Porém, o peso da idade chegou, a audição começa a falhar, a voz quase inaudível. As decisões agora cabem a Darci, que nunca faltou ao pai. "A gente sempre pareceu dois piá junto", compara. O velho concorda, sentado no banquinho, joelho com joelho, mãos acomodadas dentro da touca de lã azul e vermelha. Isso faz tempo. Hoje está magro, barba branca e rala, orelhas salientes na cabeça miúda de cabelos brancos, escassos no cocuruto e desgrenhados nos lados. Vicentinho já fez sua parte, agora é com o filho. A voz tropeça, mas ainda opina.

"Cumé qui pode trancá um rio se isso é coisa da natureza? É até pecado." Vicentinho está no grupo de moradores a serem atingidos pelo reservatório que ainda não venderam as terras à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), subsidiária da Votorantim. O maquinário comprado há sete anos não conseguiu lançar um metro cúbico sequer de concreto na usina. À espera da licença ambiental, a CBA foi comprando as terras para adiantar o expediente. O centenário resistente mora a mil metros da futura barragem, 10 quilômetros acima das cidades de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR) e a 300 quilômetros da foz do Ribeira de Iguape.

Com os recursos de quem estudou até os 15 anos, Darci descreve os métodos empregados no início das investidas: "Chegou uns três ou quatro advogado e eles têm o costume de assustá as pessoa, de dizê ansim: a hora que construí a barrage aqui vem bandido, vem ladrão, e um pai de família não pode vivê num lugar ansim". O tempo deixou os argumentos mais sutis. As novas propostas até agradaram, mas nunca se concretizaram. Até houve um reunião na Ilha Rasa em que representantes da CBA prometeram sete hectares em troca dos dois de Vicentinho, mais uma casa de R$ 20 mil e subsídio para o plantio durante um ano.

Darci teria aceitado na hora, mesmo a contragosto do pai, mas os advogados nunca apareceram para fechar o negócio. "Quem vai combatê contra uma firma? Só outra firma, né?", justifica. Este papel de opositor tem sido desempenhado por ambientalistas e por parte das populações a serem atingidas. Para eles, o simples anúncio da construção da barragem já deixou o Vale do Ribeira em stand by, cada vez mais empobrecido. A população deixou de investir nas propriedades e o governo deixou de investir em estradas, em educação e moradia. Eis a justificativa da inércia: "Não adianta fazer nada, a barragem vai cobrir tudo mesmo."

"A CBA se aproveita da falta de regularização fundiária das terras, ocupadas há anos por posseiros, para se apropriar delas", acusa a coordenadora do Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa. As pessoas foram vendendo as propriedades nos anos todos em que se cogitou sobre a barragem. Quem ficou vive do rio, da água e da terra. "Muitos que venderam as terras hoje passam fome, acabaram se tornando favelados em Cerro Azul, bóias-frias ou operários da CBA na região metropolitana de Curitiba", diz. Para ela, não houve compensações que garantissem as mesmas condições de vida de antes.

Antes mesmo de construída, a usina já vem causando impactos sociais e econômicos. "A compra de terras pela CBA e a expulsão de muita gente sem qualquer tipo de indenização provocou a queda de renda, aumento do desemprego, êxodo rural, mexeu com comunidades tradicionais, com a cultura e o modo de vida das pessoas", observa o presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira, Adriano Briatori. Os municípios de Adrianópolis e Cerro Azul, onde ficará a maior parte do reservatório, são quase totalmente agrícolas e têm um sistema de produção baseado na agricultura familiar.

Mais de 75% da população de Cerro Azul sobrevive da agricultura de subsistência. "A maioria não sabe fazer outra coisa a não ser trabalhar a terra, pois é descendente de colonos que se instalaram na região há mais de duas gerações", lembra Briatori. As terras mais produtivas de Cerro Azul, diz ele, estão exatamente nas regiões que serão alagadas, e produzem de tudo, desde culturas de subsistência – arroz, feijão, mandioca, chuchu, milho – até culturas comerciais, como a laranja, a poncã, a sidra. Uma das razões é que dificilmente ocorre geada na época de inverno. Em breve, isso tudo pode ficar debaixo d’água.

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