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O discurso de Gilmar Mendes, assim como o de Barroso, gerou repercussão e foi considerado uma resposta política incisiva do STF ao Legislativo.
O discurso de Gilmar Mendes, assim como o de Barroso, gerou repercussão e foi considerado uma resposta política incisiva do STF ao Legislativo.| Foto: Carlos Alves Moura / STF

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), usou a sessão plenária do órgão, nesta quinta-feira (23), para proferir discurso (leia na íntegra) repudiando a aprovação pelo Senado, no dia anterior, da PEC 8/2021, destinada a limitar decisões individuais no Judiciário.

O discurso do ministro, assim como o do presidente do tribunal Luís Roberto Barroso, gerou repercussão na imprensa e nas redes sociais e foi considerado uma resposta política incisiva do STF ao Legislativo, num contexto em que a oposição (com o apoio discreto de parte do governo) se articula para reagir ao que enxerga como excessos na atuação do STF.

Em suas críticas à PEC 8/2021, o ministro Gilmar cometeu vários equívocos.

1. O Judiciário não tem poder de veto

O ministro argumentou que a PEC “não possui qualquer justificativa plausível”, pois o STF já tinha elaborado suas próprias normas regimentais a respeito e isso demonstraria a “ausência de qualquer vácuo normativo que a legitime”.

Julgar se um projeto de lei tem ou não “justificativa”, e se é ou não melhor do que a norma atual feita pelo STF, é uma valoração política, e não jurídica. Isto porque não indaga se a ideia contraria ou não a Constituição: trata-se de uma opinião subjetiva sobre o que deve ser politicamente implementado no país, dentro do campo infinito das possibilidades permitidas pela Constituição.

Numa democracia representativa, e conforme a Constituição brasileira, quem tem a prerrogativa de realizar esse tipo de juízo são os representantes eleitos – inclusive o presidente, que tem poder de veto político sobre uma proposta que considere injustificada. Já o STF não tem poder de veto. Se a lei for seguida, seus membros podem até criticar a conveniência da proposta, como qualquer outro cidadão, mas não poderão utilizar este fundamento em eventual exercício do cargo, para excluir a norma do ordenamento.

2. Impedir o impeachment de ministros do STF daria à Corte um poder ilimitado, como numa monarquia absoluta

A respeito da possibilidade de se instaurarem processos de impeachment contra membros do tribunal, o ministro anunciou que eventuais processos do gênero “hão de estar submetidos ao crivo judicial” para enterrar “acusações mambembes”.

Também neste caso, contudo, a prerrogativa de julgar se a acusação é “mambembe” ou procedente não foi atribuída pela Constituição ao STF, mas sim ao Senado Federal.

Atribuir esta função ao STF seria, aliás, contrário ao espírito da própria existência das constituições, que surgiram historicamente para limitar o exercício do poder por normas e controles externos. Caso o Senado não pudesse julgar o impeachment de ministros (a única forma de controle externo que existe para o STF), o tribunal teria um poder ilimitado, incompatível com o Estado Democrático de Direito, similar ao de uma monarquia absoluta.

3. A PEC não impede freios do Judiciário aos outros poderes

O mesmo princípio dos freios e contrapesos é invocado pelo próprio ministro Gilmar, mas para afirmar que a PEC 8/2021 é que o poria em risco, ao prejudicar a capacidade do Judiciário de rever os atos dos outros poderes. 

Esta alegação não procede, justamente porque, ao contrário do que se insinua, a PEC mantém intacto o controle externo do Executivo e do Legislativo pelo Judiciário, inclusive pelo STF. O que muda é apenas a forma como isso será feito: em vez de se admitir que um magistrado, por exemplo, suspenda sozinho, por decisão monocrática (individual), uma lei que acabou de ser aprovada pelo Congresso, passará a ser exigido que o órgão colegiado (isto é, composto por vários membros) vote conjuntamente (com a participação do magistrado em questão) para que a mesma lei possa ser suspensa.

Esta exigência de decisão colegiada nem mesmo é nova no ordenamento; já é prevista, em alguns casos, pela Constituição, que apenas acrescenta novas hipóteses ao mesmo artigo em que já era feita a previsão.

4. O Poder Judiciário também pode ser ameaça autoritária

Disse o ministro: “As ditaduras são sempre deploráveis, e elas podem existir tendo como marco o Executivo ou, também, o Legislativo.”

O ministro deixou de fora da formulação o próprio poder que integra; ao contrário, tratou dele, em seguida, como antídoto democrático, e, ecoando o atual presidente da Corte (ministro Luís Roberto Barroso), como poder frágil a ser defendido em prioridade, por ser sempre atacado por pretendentes a ditadores.

No entanto, os riscos à democracia e à liberdade política são cada vez mais reconhecidos como também podendo vir do Judiciário. Alguns excessos cometidos pelo STF nos últimos anos contra cidadãos comuns, como empresários e jornalistas, não respeitando princípios como o da dupla jurisdição ou do juiz natural, e mecanismos do Código de Processo Penal, corroboram essa tese.

Inclusive o jornal americano The New York Times já publicou múltiplas matérias expressando preocupação com a atuação do próprio STF neste sentido. O jornal sugere que, a pretexto de defender a democracia, o tribunal emitiu decisões aumentando unilateralmente os próprios poderes e se tornou uma ameaça à democracia por sua própria conta.

Além disso, vários ministros do STF já expressaram publicamente a sua compreensão de que este tribunal, especificamente, além de integrar o Poder Judiciário, constituiria também o chamado Poder Moderador, não previsto na Constituição. Assim, não basta questionar a respeito do Poder Judiciário, sendo necessário também indagar se este outro poder, de que os ministros se dizem representantes, é fonte possível de ameaça autoritária. A resposta é positiva: na filosofia política, a própria existência de um Poder Moderador (com sua supremacia implícita sobre os demais poderes) é frequentemente desprestigiada como traço autoritário.

5. Parlamentares enxergaram tentativa de intimidação

O ministro criticou “recados da rua” que interpretou como supostas insinuações parlamentares para intimidar os membros do STF, mediante ameaças de abertura de processo de impeachment contra um ou mais membros. 

O ministro tem razão de que, em certos casos, ameaças de uso abusivo de instrumentos legais podem servir para intimidar um agente público de forma a impedi-lo de atuar pelo interesse público. Contudo, o próprio fato de o ministro reconhecer a gravidade deste tipo de fenômeno deveria levá-lo a tomar mais cuidado com sua linguagem, justamente para evitar mal-entendidos do gênero causados por seus próprios discursos.

Neste sentido, o ministro causou polêmica ao dizer: “a PEC não impede decisões monocráticas em habeas corpus, mecanismo muitas vezes utilizado pela defesa de agentes políticos que, ontem mesmo, se articularam para restringir as competências da Corte Constitucional.”

Ao assim dizer, o ministro, quer ou não tenha tido a intenção, revelou ter, em algum momento, mentalizado quais senadores votaram a favor da PEC 8/2021 e quais entre eles tinham processos criminais tramitando contra si no STF (inclusive no gabinete do próprio ministro). Estes processos são circunstância potencial de habeas corpus, um tipo de ação na qual um ministro do STF pode, por exemplo, ordenar, ou deixar de ordenar, a soltura de réus criminais. Por esse motivo, a fala causou desconforto no meio político.

Como exemplo, a suplente de deputada federal Marina Helena (NOVO-SP) postou o trecho da fala na rede social X (antigo Twitter) com o comentário “Parlamentares, tomem cuidado”.

Correta ou não a interpretação da suplente, a mera conjectura da possibilidade já tem potencial para causar, em si, constrangimento ao livre exercício do mandato parlamentar; principalmente em conjunto com outras manifestações, também preocupantes, que supostamente teriam sido feitas em off por ministros do STF à imprensa.

Qualquer que seja o resultado da votação da PEC 8/2021, é necessário que o Judiciário respeite a independência do Legislativo e que o Legislativo respeite a independência do Judiciário, cada um dentro de suas atribuições. Sendo a função do Judiciário interpretar o texto da Constituição e a do Legislativo decidir qual será o texto da Constituição.

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