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Desde a sua criação, o CNJ vem se afastando das atribuições originais. Um dos marcos iniciais desse desvio aconteceu há exatamente uma década
Desde a sua criação, o CNJ vem se afastando das atribuições originais. Um dos marcos iniciais desse desvio aconteceu há exatamente uma década| Foto: : Lucas Castor/Agência CNJ

A Constituição Federal se sustenta na divisão dos três poderes. O princípio é cristalino: um poder (o Legislativo) elabora as leis; outro (o Executivo) as coloca em prática; um terceiro (o Judiciário, julga conforme a lei). Mas nem sempre essa divisão funciona conforme prevê o texto constitucional. Parte dessa distorção tem a ver com a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Criados ao mesmo tempo e com atribuições semelhantes, os dois órgãos têm se transformado em instrumentos para a promoção de uma agenda própria, sem o aval do Congresso. 

O CNJ não faz parte do texto original da Constituição de 1988. O órgão só foi criado uma década e meia depois — quando o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 45, de 2004. O CNJ entrou em funcionamento em junho de 2005. Com ele, nasceu o CNMP. Os dois órgãos foram criados para tratar de temas internos (orçamentários, administrativos e disciplinares) do Judiciário e do Ministério Público, respectivamente.

O autor da proposta (a PEC 96, que reformou o Judiciário) foi o então deputado Hélio Bicudo (PT-SP), que apresentou o texto ainda em 1992. A ideia de um controle externo preocupava alguns nomes do Direito, como o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa. No discurso que fez na abertura dos trabalhos do Legislativo em 2004, ele criticou a tentativa de criação de um órgão como o CNJ. Para ele, a medida era desnecessária e causaria problemas ao dar corpo a um órgão no qual pessoas de fora do Judiciário ajudam a decidir sobre os rumos deste poder.

“Não sei, sinceramente, como se poderá compatibilizar as funções de órgão dessa natureza, integrado por pessoas estranhas aos seus quadros, com a independência e autonomia de que se reveste o exercício da prestação jurisdicional”, criticou Corrêa. O então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Nilson Naves, também se opôs à criação do conselho. Já o governo Lula, que estava em seu primeiro mandato, apoiou a medida com base no argumento de que juízes (e promotores) precisavam estar submetidos a um maior controle da sociedade.

Missão deturpada 

O CNJ tem 15 membros com mandato de dois anos e possibilidade de uma recondução ao cargo. Os membros incluem o presidente do STF, um ministro do STJ, seis juízes, quatro membros do Ministério Público, dois advogados indicados pela OAB e dois cidadãos indicados pelo Congresso. 

A Emenda que criou o CNJ estabelece que “compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.” O órgão pode punir juízes que violam as normas da magistratura, e também tem a missão de elaborar um relatório anual com sugestões de medidas a serem tomadas para melhorar a atuação do Judiciário; o documento é enviado ao STF e ao Congresso. 

Desde a sua criação, entretanto, o CNJ vem se afastando das atribuições originais. Um dos marcos iniciais desse desvio aconteceu há exatamente uma década.

Em 2011, o STF equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, mas sem mencionar a possibilidade de casamento civil. A partir dessa decisão, o Conselho Nacional de Justiça determinou, em 2013, que os cartórios deveriam não só realizar uniões estáveis homoafetivas como também casamentos de pessoas do mesmo sexo, com exatamente os mesmos efeitos do casamento tradicional, o que extrapola a decisão do STF. Ou seja: uma simples resolução de poucas linhas, elaborada por um órgão administrativo, encerrou um debate que, em outros países, ocupou anos de discussão no Parlamento, a quem cabe modificar a legislação em vigor.

A atuação recente do CNJ também fornece outros exemplos preocupantes.

Em fevereiro, uma resolução do CNJ decidiu encerrar os manicômios judiciários, onde ficam internadas pessoas que cometeram crimes, mas foram consideradas mentalmente incapazes. O texto exige que, em seis meses, os juízes deixem de determinar internações nesses locais. Em um ano, os manicômios judiciários devem estar totalmente fechados. A resolução estabelece ainda que, em situações "absolutamente excepcionais", quando alguma medida de segurança for necessária, a pessoa deve ser internada em hospitais comuns. O texto enfatiza que o Judiciário deve atuar “para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátricos.” A medida foi criticada por especialistas em segurança pública, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Brasileira de Psiquiatria, segundo a qual o fim das unidades de internação psiquiátrica traz  “grande prejuízo à saúde pública”, e “risco ao paciente, familiares e população em geral.”

Há duas semanas, o Conselho Nacional de Justiça também abriu investigação sobre a juíza Joana Ribeiro, de Tijucas (SC), que não autorizou a realização de aborto em uma garota de 11 em fase avançada de gestação - o bebê já era viável fora do útero e a menina estava bem de saúde. O CNJ afirma, erroneamente, que a juíza “impôs suas convicções pessoais em caso concreto.” A gestação não foi fruto de um ato violento, mas de um relacionamento da garota com o meio-irmão (de 13 anos de idade). Além disso, a gestação já estava avançada, com 22 semanas. A literatura médica registra casos de bebês que nasceram e sobreviveram ao parto com essa idade. Aliás, o caso só chegou ao Judiciário porque os médicos se recusaram a realizar o aborto.

Em abril, o CNJ determinou que 5% das vagas nos tribunais para mulheres “em situação de violência ou vulnerabilidade.” A lista especifica os critérios: serão beneficiadas “mulheres pretas e pardas, em condição de especial vulnerabilidade econômico-social, egressas do sistema prisional, migrantes e refugiadas, em situação de rua, indígenas, mulheres do campo, assim como para pessoas trans e travestis.”

Para Thiago Vieira, mestre em Direito e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), a atuação recente do CNJ indica um afastamento da missão atribuída ao órgão pela Constituição. “As atribuições do CNJ estão previstas no art. 103-B. § 4º da Constituição e guardam relação com a gestão administrativa e financeira do Poder Judiciário e com o cumprimento o Estatuto da Magistratura, inclusive no julgamento de processos disciplinares envolvendo magistrados”, explica. Para ele, algumas decisões recentes tomadas pelo colegiado “fogem das atribuições constitucionais do CNJ.”

Vieira afirma que a causa desses excessos é a influência exercida por grupos progressistas. “Isto acontece porque elementos orgânicos da sociedade estão sendo manipulados em razão de pressões ideológicas e sociais de quem não possui legitimidade para tal”, ele diz.

Órgão análogo ao CNJ, CNMP também age ideologicamente 

Com uma estrutura semelhante ao CNJ, o CNMP tem 14 integrantes — além de membros do Ministério Público, o colegiado é integrado por dois juízes, dois advogados e dois cidadãos. O órgão também têm agido de forma ideológica e adotado uma interpretação criativa do que diz a Constituição.

Em uma resolução publicada em 2019, por exemplo, o CNMP endossou a tese do “racismo institucional”, importada da esquerda radical dos Estados Unidos. Segundo essa corrente de pensamento, é possível que os negros sejam vítimas de racismo mesmo que não haja qualquer pessoa racista no poder; as instituições, por si só, já praticam a discriminação.

A resolução determina que, no trabalho de avaliação da atividade policial por parte dos promotores de justiça, o aspecto racial seja levado em conta. Um dos itens na lista pede “a modificação das estruturas institucionais das forças policiais, para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades decorrentes do preconceito e da discriminação étnico-racial, no exercício da atividade policial.”

Eis como o texto define o racismo institucional: “A questão da seletividade racial tem a ver com as múltiplas dimensões com que o racismo se manifesta no conjunto das relações sociais estabelecidas, especialmente no Racismo Institucional, a partir de filtros discriminatórios que integram a subjetividade dos agentes públicos, remetendo à necessidade de uma atuação pontual que se aproprie de estratégias adequadas de enfrentamento a partir da identificação e reconhecimento dessa Realidade.”

A alegação de que as instituições são racistas é feita com base em inferências frágeis. Por exemplo: a resolução cita que as pessoas negras tem, proporcionalmente, maior probabilidade de serem vítimas de assassinatos. Mas não explica porque seria a causa do problema seria o racismo, e não outros fatores (como o fato de essa população ter uma renda mais baixa).

Para Thiago Vieira, a adoção de uma pauta ideológica pelo CNJ e pelo CNMP é fruto de um “neoconstitucionalismo militante”, que coloca em segundo plano o texto da Constituição e a vontade popular. “O problema é esse neoconstitucionalismo que permite exegeses elásticas da norma, ao bel sabor do intérprete”, define.

De acordo com a Constituição, cabe ao Senado Federal “processar e julgar” os membros do Conselho Nacional de Justiça quando eles cometerem algum crime de responsabilidade. Até hoje, nenhum membro do CNJ foi cassado pelos senadores.

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