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Ao longo da vida venho mantendo uma relação de amor e ódio pelos revisores de texto (aliás, atenção, revisão: o título é proposital!). Bem, o patrono dos revisores brasileiros é ninguém menos que Graciliano Ramos, para mim o maior prosador brasileiro do século 20, que trabalhou como revisor de jornal, nos tempos tipográficos em que essa profissão existia. Do anedotário que deixou, lembro o seu horror ao advérbio "outrossim", que ele riscava sem piedade, xingando-o com um palavrão, e à expressão "via de regra", que definia por uma palavra chula, designando o órgão sexual feminino. Por causa dele, ou em homenagem a ele, nunca mais usei "outrossim" e "via de regra" na minha longa vida de escrevinhador. Prefiro sempre "do mesmo modo", "igualmente", e em vez da via de regra eu tasco "normalmente", "em geral", etc. Não que sejam melhores ou mais corretas, nada disso – mas palavras são como pessoas; quando você pega raiva de alguma, você quer distância.

Como fui professor a vida inteira, fui também, sem querer, um revisor – entre outras anotações, era isso que eu também fazia ao corrigir redações: revisão de texto, trocando esses por zês e vice-versa. Mas a língua é bicho indócil, seja falada ou seja escrita, e o espectro de possibilidades é infinito. Começa da certeza absoluta – a ortografia, como grafar as palavras, uma área definida por lei – até uma grande zona mais cinzenta e esotérica, capaz de provocar discussões metafísicas, no bar e na escola, o que inclui colocação de pronomes ("ele me tinha dito" x "ele tinha me dito"), aspectos de concordância ("ouviu-se as vozes da rua" x "ouviram-se as vozes da rua") e o gigantesco banhado da regência ("vou no cinema" x "vou ao cinema". Ou, nesse mesmo texto, lá em cima, "lembro o horror" ou "lembro do horror"? E, falar nisso, "nesse texto" ou "neste"?).

Conversando, ninguém nota nada; por escrito, o revisor é sempre um homicida sádico ("Arrrá! Peguei no pulo!") e a caneta vermelha jorra sangue no "A gente conversou bastante, e decidimos aprovar"... como assim? "A gente decidimos?!" Ah, mas tem um "nós" oculto no segundo verbo! E então? Não decidiram ainda!

E há um importante complicador suplementar: a literatura (romances, contos, poemas) tem outro estatuto de linguagem, e é aí que o autor – e a revisão – sofrem mais. Cada vez que recebo provas para revisão começo a desconsertar correções (Atenção: é desconsertar mesmo!). Exemplo: a fantasia da distinção entre "esse" e "este", já sem correspondência real em nenhum lugar da língua (nem mesmo na escrita), mas que a revisão de cartilha insiste em marcar. Boa parte da literatura tem um ouvido coloquial, atento a aspectos da oralidade, que a gramática normativa desconhece. Mas jornal, é claro, não é literatura – é língua padrão (aliás, uma de suas fontes mais importantes). E aqui os revisores sempre me salvam, evitando terríveis vechames!

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