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Não gosto do gênero "terror", em cinema ou literatura, talvez pela minha obsessão racionalizante; entre Sherlock Hol­­mes e Drácula, sempre prefiro o detetive. Mas lendo um ensaio ou um livro de história, às vezes enveredo pela realidade do terror, o momento em que a condição humana perde a referência e a vida não encontra nenhuma âncora. A sobrevivência é o acaso. O terror de Estado, que se propõe político, é na verdade a morte final da política. O tema me vem de Sussurros (Record), um livro monumental do pesquisador inglês Orlando Figes que faz uma varredura detalhada e arrepiante da vida cotidiana na União Soviética sob Stalin. Pelo progressivo controle do Partido Comunista, da máquina de propaganda e dos braços policiais, amparados por uma ausência completa de uma ordem ou direito legal além da palavra do ditador, Stalin criou uma sociedade destruída, ou pelo medo, ou pelo fanatismo. Entre um e outro, uma horda voraz de oportunistas encontrava seu lugar (sempre incerto) na burocracia que empurrava o império.

Depois do desastre da coletivização forçada do campo, que matou mais gente de fome do que qualquer outro projeto agrário do século 20, fez-se a industrialização à custa do trabalho escravo e semi-escravo dos "campos de trabalho" e gulags. É inacreditável, mas os servos do tempo do czar levavam uma vida melhor. Sob Stalin, mais de 1 milhão de pessoas foram fuziladas, em "julgamentos" sumários. Processos eram encenados com confissões espetaculares de complôs inverossímeis e absurdos. Para os agentes de segurança, havia cotas a cumprir. Não era raro militantes fiéis, honestos, apaixonados pela revolução, assinarem de bom grado confissões estapafúrdias e aceitarem o próprio fuzilamento em patriótica autoimolação.

Lembro que, anos atrás, quando li 1984 (Companhia das Letras), de George Orwell, a célebre distopia do século 20 sobre um mundo totalitário, fiquei intrigado com a obsessão do poder em arrancar confissões das pessoas, quando nada o impedia de simplesmente eliminá-las, num mundo sem nenhum eixo de valor. Pelo mesmo espírito da Inquisição, era preciso dobrar as pessoas antes de matá-las. A tortura tornava-se um instrumento imprescindível de trabalho – ela dava algum sentido ao absurdo. Parecia um exagero ficcional de Orwell, um terror gratuito. Lendo Sussurros – uma obra amplamente documentada pelos arquivos que se abriram na Rússia pós-abertura – percebi que o romance de Orwell estava muito aquém da realidade.

O assustador é que a base do totalitarismo – a ideia de que, para funcionar, o Estado precisa eliminar os diferentes – encontra farta defesa num certo senso comum, ou no nosso instinto de achatar a realidade. Stalin e Hitler não surgiram do nada, como demônios incompreensíveis. Milhões de pessoas comuns embarcaram entusiasticamente no mesmo delírio.

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