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Li Cem anos de solidão em 1971, no Rio de Janeiro, então aluno da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante, nos poucos meses em que lá fiquei até pedir desligamento e dar outro rumo à minha vida. Em semanas alternadas, tinha de dar serviço da meia-noite às quatro, o que significava passar a madrugada circulando nos corredores dos "camarotes" dos alunos, como se chamavam os alojamentos. Para mim, eram serões de leitura, à luz da escrivaninha, abandonando o posto, sob a tolerância de alguns vigilantes e ameaças de denúncia de outros. Neste clima de A cidade e os cães, o primeiro romance de Vargas Llosa, justamente sobre um internato militar, que eu li Cem anos de solidão.

Foi uma leitura tão forte e impressionante que ia muito além da literatura. Naquele momento, não era apenas um romance original; era uma espécie de Bíblia da cultura política e poética latino-americana. Seu lançamento, no fim dos anos 1960, representou um dos raros momentos em que havia no mundo uma ativa "esquerda poética" – em que um projeto político parecia conter necessariamente um ideário estético. Muito da irresistível atração que a obra-prima de García Márquez exerceu no mundo se deve ao seu inseparável subentendido político, no exato momento em que os ideais racionalizantes do Ocidente iluminista, vistos como disfarce de sua alma cruel capitalista, explodiam todos.

É uma combinação perigosa; na vida real, sempre que a estética invade o mundo político, o resultado é trágico, como nos desfiles militares do poder triunfante, ou nos fuzilamentos tocados a poesia. Um suave irracionalismo varria as almas; o chamado "realismo mágico" parecia ser a resposta a um tempo estética, política e existencial a uma realidade insuportável, o eterno martírio latino-americano. Neste panorama, caudilhos – como os Buendía de Cem anos de solidão – podem ser figuras míticas e redentoras; é a realidade que é fantástica, não a ficção, como diria o próprio García Márquez, fiel amigo de Fidel Castro, o símbolo maior da revolução daqueles tempos. Hoje, ironicamente, Fidel vive o mesmo "outono do patriarca" espelhado no melancólico romance que Márquez escreveu em resposta justamente a Pinochet, seu arqui-inimigo.

Mas a essência literária de Gabriel García Márquez nunca foi, de fato, política – foi trágica. Ele herdou do escritor americano William Faulkner, de quem recebeu importante influência formal, a vertente bíblica, do Velho Testamento, da inexorabilidade do Destino, vinculando-o às tragédias pessoais ou à condenação eterna de linhagens e estirpes – no seu universo, o mundo é sempre maior que as pessoas. Literariamente, sua Crônica de uma morte anunciada, uma novela perfeita, é a obra-prima que sintetiza sua visão de mundo, no plano do indivíduo; e Cem anos de solidão, sua Cosmogonia poética, a mais densa e multifacetada representação ficcional da tragédia da América Latina.

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