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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Em 1975, fui um trabalhador ilegal em Frankfurt, na Alemanha. Embora proibissem a contratação de estrangeiros sem documentação legal ou autorização oficial para o trabalho, havia uma imensa demanda de mão de obra em atividades não especializadas. Bastava uma mentira piedosa qualquer, prometendo os tais papéis para breve, que o candidato era imediatamente contratado.

O primeiro emprego, no Hospital das Clínicas, foi uma aventura arriscada que deu certo. Sem dinheiro para voltar a Portugal, onde eu estava instalado, fui aceito sem muitas perguntas e logo vi de perto uma outra Alemanha que não tinha nada a ver com os romances de Thomas Mann que eu levava na cabeça. Na verdade, eu passava minhas 12 horas de trabalho sem praticamente ver alemães. O meu chefe era um argelino. Convivia com portugueses, árabes, turcos, espanhóis, iugoslavos. O ambiente de trabalho era quase sempre agradável, e nunca me esqueço das sacolas de marmelada, pão caseiro e garrafas de vinho com que as senhoras portuguesas me presenteavam por ser um "doutor de Coimbra", quando eu sequer tinha entrado numa sala de aula na universidade fechada por conta da Revolução dos Cravos (o que eu tentava inutilmente explicar). Em toda parte falava-se uma língua que era uma mistura eficaz de sons, gestos e palavras avulsas em várias línguas. No final da semana, eu recebia um envelope com o pagamento em dinheiro vivo – 7 marcos por hora trabalhada, uma grana respeitável para um bicho-grilo daqueles tempos. Nunca precisei assinar um recibo.

Em pouco tempo percebi o abismo que havia entre a sociedade alemã e o mundo dos imigrantes. Eram apenas trabalhadores, não cidadãos – aliás, não eram cidadãos de país nenhum. Muitos estavam lá há mais de 20 anos e não sabiam duas frases de alemão, o que parecia a regra geral dos imigrantes, todos vivendo em guetos – e que já vinham de guetos de sua própria terra, como os camponeses de Portugal. De certa forma, essa foi a regra dos países europeus ricos, que acabaram fazendo do isolamento do estrangeiro pobre uma espécie de "cada um na sua", segundo a clássica formulação multicultural, que recusa a integração em nome do respeito à diferença. A França é uma exceção, pelo seu esforço político de fazer valer os velhos princípios iluministas de um Estado laico, obrigatórios para todos, de olho assustado na disseminação muçulmana. Mas nada parece dar certo – e o fantasma das antigas "tribos" (expressão usada pelo norueguês fanático que assombrou a tiros e bombas o paraíso nórdico) continua destroçando a utopia de uma nova Europa.

O trabalho imigrante vem varrendo o chão da sociedade do bem-estar europeu há décadas (no meu período em Frankfurt, jamais vi um alemão carregando um balde e uma vassoura), mas agora o sistema ameaça entrar em colapso. Sim, as raízes são todas econômicas, porém o nó verdadeiramente duro de desatar é cultural.

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