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Fazia muito tempo que eu não vivia tão à solta como aqui, no meu exílio feliz – um mês inteiro de férias totais. O álibi perfeito para os convites que, vez ou outra, apitam no celular ou na internet a manivela: estou na praia, em algum lugar fora do radar. Como o carnaval já está na porta, vou emendar tudo e seguir em frente, reformatando a rotina. Mesmo assim, longe de tudo e de todos, como acontece coisa por aqui!

Acostumado com o lagarto, que todas as manhãs desfila jurássico para pegar um sol, foi uma surpresa descobrir um lagartinho agitado, que entra e sai da toca do pai (ou da mãe – estou sem conexão para consultar o google) ao menor apito de grilo. E mais ainda, nesta maquete de selva: entrevi na folhagem um gato, com jeito de onça. O lagartinho entra em pânico; o lagarto mantém uma certa dignidade majestosa antes de desaparecer de um estalo no fundo da Terra. Não sei quem é quem nessa guerra de titãs: não sei se o gato tem medo do lagarto, ou se é o contrário, ou se tudo depende do tamanho do freguês. O que eu sei é que a lei da selva desgraçadamente não segue os princípios rousseaunianos – não há bom selvagem por aqui. Todos querem se matar.

Enquanto isso, continuo tentando me civilizar, lendo bastante. E já não tenho dúvida de que está havendo um consistente renascimento da prosa brasileira, capaz de fazê-la recuperar os leitores que perdeu, depois de um relativo limbo de três décadas. Comprei pelo iPad (minha última traquitana), em formato digital, "A máquina de madeira", um romance marcante de Miguel Sanches Neto. É uma bela narrativa, com um toque sombrio e melancólico, quase gótico, sobre o padre brasileiro que inventou no século 19 um protótipo de máquina de escrever – que, é claro, jamais conseguiu viabilizar, enterrado no insuperável atraso escravocrata brasileiro. Mas um aventureiro americano levou o projeto, que uma empresa chamada Remington tornaria realidade poucos anos depois.

E há poucos dias acabei de ler outro romance, Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. O título assusta, mas o texto segura o leitor da primeira à última página, com uma prosa limpa e um domínio da arquitetura romanesca como poucas vezes se encontra. O livro enfrenta o ideário que moveu (e vem movendo) boa parte da geração formada do fim do século 20 aos nossos dias. Ao tratar de um jovem solitário em busca de suas raízes familiares e emocionais, o narrador equilibra frieza, distância e empatia, escapando de armadilhas ideológicas ou sentimentais. E, de não ficção, já estou com a bela edição de Os ovos de Fabergé, de Toby Faber, na cabeceira – a história das riquíssimas preciosidades de joalheria que, na Páscoa, os últimos czares davam às esposas, enquanto a Rússia inteira se afundava em torno.

Bem, venho me arriscando também na cozinha – mas isso fica para outro dia.

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