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Minhas longas férias chegaram ao fim. Ainda bem. O sentimento de culpa por tanta vagabundagem já estava batendo insidioso na minha alma curitibana. No fim do dia, sempre o travo daquela voz secreta autoacusatória: "Não fiz nada hoje!" Quer dizer, foi um período de engorda, treinamento de fogão, estalos de latinhas de cerveja, galetadas e peixes fritos, cocadas fora de hora e, no final da tarde, a espera da Kombi anunciando o sonho e o pão caseiro. A passagem das coloridas bermudas de praia, movidas a elástico, para as sóbrias calças da cidade, amarradas com botões e cinto, está sendo traumática. Colocar meia e sapato com cadarços é uma operação esdrúxula que envolve algum cálculo preparatório e ginástica experimental.

Mas ficaram as leituras, erráticas e boas, e pelo menos uma descoberta sensacional: Alice Munro, a contista canadense que ganhou o último Prêmio Nobel. Li Ódio, amizade, namoro, amor, casamento (Biblioteca Azul) – uma coletânea com nove histórias longas – e gostei muito. Um olhar feminino realista, a um tempo delicado e impiedoso, sobre os desastres da vida em comum e os desconcertos em família. No impulso, já comprei da mesma autora, em formato digital, Vida querida (Companhia) – são dez contos, mais quatro relatos autobiográficos. Será minha reserva de cabeceira e viagem. Para sair um pouco da ficção, mergulhei numa ótima e bem documentada biografia de Engels – Comunista de casaca (Record), do historiador inglês Tristam Hunt. Friedrich Engels formou com Karl Marx a dupla filosófica mais célebre do mundo desde Platão e Sócrates, com conse­quências igualmente impactantes na história do mundo, mas pouco se fala dele, com as barbas sempre à sombra de Marx. A ironia do título se deve ao fato de que Engels era o rico da dupla, herdeiro de uma empresa de têxteis que, entre bebedeiras de juventude e estudos incansáveis, acabou por sustentar o projeto filosófico do chamado "socialismo científico". O livro narra como o talentoso e bem-humorado filho de um rígido capitalista protestante deslocou-se da metafísica cristã para a metafísica do Estado, que haveria de nos redimir a todos no paraíso comunista.

Já outro livro, este de memórias – O rei se inclina e mata (Biblioteca Azul) – da romena Herta Müller, Nobel de 2009, é uma viagem intimista e sombria ao socialismo real de Ceausescu, o ditador que devastou a Romênia de 1965 até que o executassem em 1989. Nos ensaios, escritos com uma prosa de uma aguda simplicidade, ela explora em círculos os seus caminhos para manter intacta a consciência de si num Estado de terror e vigilância permanentes, em que a única porta do paraíso é a fuga. Herta Müller, de quem eu já havia lido o excepcional romance O compromisso, fez desta luta o centro de sua literatura, não como um espelho pessoal, mas como uma torturante indagação dos nossos limites e valores.

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