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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

A morte da minha mãe, nos seus 89 anos, há um mês, foi daqueles choques emocionais e existenciais que de tempos em tempos nos dão uma súbita consciência da própria fragilidade, da densidade da nossa solidão e de nossa breve medida das coisas, se é que se pode definir assim o modo com que olhamos a vida e o mundo. O choque veio mais da imagem, ou de uma certeza íntima, de que minha mãe viveria mais de 100 anos, pela sua energia e disposição (um dia antes saiu de casa lampeira para fazer seu recadastramento de aposentada), de que pelo súbito e inexorável fato biográfico, que afinal obedeceu à lógica implacável da natureza.É essa lógica simples que nos desafia e nos desconcerta. De repente, parece que amadurecemos dez anos em um dia. A nossa cultura tem uma relação muito difícil com a morte, uma relação fugidia e escamoteante. Não que essa percepção seja fácil para qualquer ser vivente, de qualquer ponto do mundo, de qualquer cultura, religião, letramento ou classe social, mas aqui parece que não conseguimos desenvolver armas para lidar com a ideia da morte, além de um balaio de chavões e lugares-comuns. São válvulas de escape, bastante funcionais, é verdade. Nada contra elas – um mundo sem lugares- comuns para a gente se refugiar seria insuportável. Mas permanece sempre um buraco-negro que não se resolve facilmente, que não se entrega a uma explicação escapista. E é preciso lembrar que os fatos nunca são idênticos em diferentes momentos da vida. Até os 30 anos, a morte não existe, é um fenômeno dos outros, um evento dos filmes, da televisão e dos livros; daí aos 50, ela passa a ser ponderada como um objeto interessante de auto-observação filosófica, mas ainda sob controle, como se a aritmética ainda estivesse do nosso lado. Depois disso, começamos de fato a ficar sozinhos com a ideia do fim.

As culturas "mítico-comunitárias", em que o indivíduo é menos importante que a família, a comunidade, a religião ou mesmo o Estado, podem ser um desastre político, etnicamente criminosas, intelectualmente messiânicas ou modernamente inviáveis, mas elas dão um sólido anteparo à solidão. Dissolvendo-me na multidão familiar, tenho a ilusão de dar um sentido superior à existência, a valores "mais altos" do que eu mesmo; de certa forma, são culturas que nos livram da noção de responsabilidade pessoal, culturas circulares que infantilizam, que apenas reafirmam eternamente a si mesmas. Mas, pelo menos no Ocidente, vivemos já há alguns séculos sob a civilização do indivíduo, ou pelo menos em sociedades centradas na noção do valor do indivíduo e de sua liberdade. Esse fundamento individual abriu um horizonte fantástico de transformações culturais e sociais; mas, do outro lado do espelho, ele nos arrancou da segurança da tribo, esvaziou seus rituais e nos deu a angústia das escolhas.

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