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De volta ao Brasil, senti o impacto de uma viagem às avessas, um mergulho para trás. Primeiro, me disseram que haveria por aqui uma nova Marcha da Família com Deus conclamando pela volta da ditadura. Comecei a rir, até perceber que falavam sério. Depois, li declarações de um ex-torturador. Ele explicava, com frieza de psicopata, como fazia desaparecer as pessoas de modo que não deixassem vestígio ao serem lançadas nos rios. Bem, homicidas sádicos e estripadores são figuras que desgraçadamente existem na vida real. Basta acompanhar o noticiário e vemos pais que jogam filhos pela janela, adolescentes que estupram e matam, senhores que guardam cabeças no freezer – o horror da condição humana não conhece limites. Para nos defender dessas situações-limite existe o Estado, que, num processo civilizatório de séculos, assimilou enfim o conceito do monopólio da força: só ele tem o poder de polícia, e, em tese, luta por garantir a integridade de seus cidadãos, quem quer que sejam.

O espantoso da notícia, entretanto, é que o torturador agia em nome do Estado; recebia proventos para o seu trabalho, obedecia a uma cadeia legal de comando e estava perfeitamente protegido pelas instituições no poder. Não foi um maluco solitário, um fanático qualquer, que sequestrou Rubens Paiva – e escolho apenas simbolicamente um entre muitos –, matou-o e deu um fim ao seu corpo. Foi um funcionário do Estado, a seu serviço. Assim como o consequente apagamento da memória do fato e de seus detalhes foi, e vem sendo, uma ação burocrática de Estado – no caso, a recusa do Exército de abrir seus arquivos, provavelmente sob a angústia de uma dupla vergonha, a da ocultar a história, de resto pública, ou suportar, também publicamente, sua revelação.

Não vou discutir aqui as variáveis políticas do caso ou a Lei da Anistia, que permite interpretações complexas e respeitáveis. Nem relembrar diferentes momentos históricos, como se o horror do passado justificasse o do presente, numa cultura em que nada sai do lugar. O passo que agora me interessa é apenas o da linha que separa a civilização da barbárie: a consciência do papel do Estado e do lugar do cidadão, uma distinção elementar que parte substancial de um Brasil embrutecido tem sido incapaz de aceitar. O retrato do atraso está exatamente aí. Comparar o monumental poder do Estado – a gigantesca máquina do governo, controlando Exército, Marinha e Aeronáutica, mais todas as polícias do país – com a ação de meia dúzia de guerrilheiros, ou idealistas, ou terroristas, ou delinquentes, ou idiotas, ou lunáticos (o leitor faz sua escolha), além de vítimas avulsas, como Herzog ou Rubens Paiva, presos e assassinados, como se se tratasse de uma "guerra" – e em que espécie de guerra é preciso desmembrar os mortos e fazê-los desaparecer nos rios? –, é torturar mais uma vez a inteligência do cidadão.

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