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Despachar ou não despachar a maleta? É melhor levar na mão, nessas viagens curtas, ele pensou, mas, vítima de uma indecisão, resolveu despachá-la no check in. Antes de entregá-la, tirou o livro que estava lendo: A língua absolvida, de Elias Canetti, um belo livro de memórias, num volume de capa amarela, a mesma cor da passagem que o funcionário solícito lhe estendeu. Ele pensava no livro, aquele menino vivendo nos Bálcãs no início do século 20, falando ladino, uma língua latina em vias de desaparecer, e vivendo a infância entre velhos judeus sefardins e ciganos, entre búlgaros e turcos, preces e maldições. Criança, morre de inveja da vizinha que já vai à escola e lhe mostra o caderno cheio de letras, que ele ainda não entende.

Tinha ainda hora e meia para o voo. Nova indecisão, olha em torno e vê a livraria escancarada e colorida. Feliz, avança para lá – vai fazer a ronda das lombadas, conferir lançamentos, admirar capas bonitas, ler trechos ao acaso, passar pelas manchetes de jornais e revistas, mas – mas ele está com um livro na mão, um livro nu. Não pode entrar na livraria. Imediatamente os funcionários vão persegui-lo com o olho, certos da má intenção daquele livro, ainda por cima novo, sem nota fiscal, assinatura do dono ou dedicatória – nada! Prevê: em dois minutos alguém perguntará se ele vai comprar o livro que tem na mão, e que ele tenta inutilmente disfarçar. Imagina até uma prisão em flagrante – "O senhor não pode sair daqui sem pagar o que pegou!" E ele não vai conseguir provar que o volume é dele. "Vejam, senhores, eu entrei aqui com esse livro. Podem conferir na câmara que grava tudo" – e olhará para o teto, atrás de um big brother do bem.

Para e pensa: um envelope, um saco plástico, algo para esconder o livro. Onde conseguir? Na farmácia, ora! Agora é uma questão de honra entrar na livraria. Basta comprar alguma coisa e ele ganhará um saco plástico. Ensaia mentalmente o que dizer: "A senhora pode colocar esse livro junto?" Mas junto do quê? Investiga o balcão e as prateleiras atrás de algo útil para dor de cabeça – paracetamol, quem sabe aspirina; dizem que um ataca o fígado, outro o estômago. Melhor o fígado. Lê aqueles nomes bizarros de remédios, enfileirados por ordem alfabética, sob o olhar intrigado da atendente. Enfim decide-se e vai para o caixa, feliz. No cálculo do troco, distraiu-se; e havia gente esperando. Ao voltar ao hall do aeroporto, descobre que o saco plástico é ideal para os comprimidos, mas o livro – ele confere – não cabe nele. Olha irritado para a livraria inacessível, tenta ainda enfiar o livro no plástico, que rasga, e ao juntar do chão a caixinha de remédio recolhe também a passagem, que caiu do bolso. Era só meia hora de espera, ele percebe o engano, e corre aflito para o embarque com a velha sensação de sempre de que deixou algo importante para trás.

Cristovão Tezza é escritor.

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