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 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

“Mário? Que Mário?” – pergunta o jornalista distraído à cineasta Lia Marchi, ao ouvi-la listar suas referências de uma vida toda. O Mário de quem ela fala é o escritor e folclorista Mário de Andrade. É um bocadinho filha dele e outro bocado dos pesquisadores Inezita Barroso, José Ramos Tinhorão e Inami Custódio Pinto. Ponha-se aí uma gota de sangue do indigenista tcheco Vladimir Kozák. Para fechar a genealogia, um sem-número de tocadores de viola e quetais com quem gasta seus dias nos últimos 18 anos. Nesse tempo acumulou milhagens aos milhares pelos litorais e sertões. Um caso de amor com a cultura de raiz.

Caso alguém ainda esteja se perguntando: “Lia? Que Lia?”, uma colher de biotônico. Faz bem à memória. A curitibana Lia Marchi vem do teatro. Teve uma breve passagem pelo extinto Grupo Resistência, do diretor Márcio Abreu. Teria sido ali, na penúria mambembe, que aprendeu a trabalhar em companhia de outros e em estruturas minúsculas, aquelas que esbanjam alegrias e economizam nos vinténs. Assim permanece.

No meio desse caminho, “tipo destino”, cruzou com o mestre Inami – sujeito que lhe deu asas. Nunca mais passou impune nem por cerâmicas, nem por fitas, por cantares, nem pela lágrima que brota da corda de uma viola. Entendeu que tinha de cruzar lonjuras. Viajou, primeiro rumo à Ilha dos Valadares, depois em direção a Guaraqueçaba, entregue à tarefa de contar a saga de uma família de violeiros – os Pereiras. Foi seu passaporte rumo ao Brasil Profundo.

Lia é do tipo que ri de fazer eco. Como se uma benzedeira tivesse lhe ungido o cenho com um ramo de alecrim cheiroso

Houve quem estranhasse ver aquela moça de fino trato entregue a estradas esburacadas, a salões de baile capazes de ruir à primeira das tamancadas fandangueiras. Impossível não associá-la à classuda Marlyse Meyer, da USP, um dia à frente do insólito “Instituto de Altos e Baixos Estudos do Imaginário”, lugar de pequenezas desprezadas. Os baixios lhe fizeram bem: depois da família Pereira, Lia reportou a história de nada menos que 160 violeiros, salvando-os do silêncio obsceno. Como fez? Pediu aos amigos que comprassem rabecas, “para ajudar”, e pagou a edição. No teatro era simples assim. Na pesquisa também seria.

Lia assim se chama em homenagem a Bete Mendes, que viveu uma Lia de novela. Mas não se importa quando, por força do ofício, a relacionam com Lia de Itamaracá. Deu-se de fato às cirandas. Muitas. De 1998 para cá, chegou à impressionante marca de 12 documentários, cinco livros e um sem-número de congressos. Sua matéria prima são folias de reis, bois de mamão, danças, fandangos, romarias, cantorias, culturas quilombolas e – a última empreitada – benzedeiras. Navega um oceano de “ensenhanças”, como talvez lhe dissesse o poeta Manoel de Barros. Pena não ter medido os quilômetros rodados até aqui. Saberíamos quantas vezes poderia ter ido à Lua em quase duas décadas de expedições ao coração do Brasil.

Causa estranheza que seu trabalho seja reconhecido apenas em nichos discretos de universidades e secretarias de Estado. Há quem diga que Lia é mais festejada em Portugal que no Brasil. Ela fica sem graça quando lhe colocam holofotes, mas não nega. Suas pesquisas passam pelo Alentejo, Trás-os-Montes, Açores e Madeira, debaixo de aplausos. No melhor do estilo “viajo porque preciso, volto porque te amo”, entende que tem de encontrar ecos entre os tocadores daqui e os de “Além Tejo”. É uma lenha – mas Lia não é mais invisível do que o assunto que abraçou.

Nas escolas, a cultura tradicional se resume à Semana do Folclore, ocasião em que são convocados Saci Pererê, Caipora e Mula-sem-Cabeça. “Fica no exótico”, lamenta, sobre uma prática que só faz perpetuar a ideia de que esses saberes são tão velhos que devem estar mortos, que são regionais quando na verdade são universais. “Aiaiai, tá tudo errado. A Folia do Divino de Guaratuba tem 200 anos... A cultura popular é viva. E se move”, brada, voz maviosa, talhada em cantorias. Quer mais? Há quem tenha o desplante de lhe dizer que o fandango não passa de uma música ruidosa. O tempo fecha. “Coloque uma composição dessas na partitura para ver só. É sofisticada.”

Não a tomem por ressentida, longe disso. Bem que desanima quando tem de preencher torturantes editais de financiamentos. Em concluir que custaria tão pouco registrar o que fazem as comunidades tradicionais. Mas tudo sempre acaba bem. Lia é do tipo que ri de fazer eco. Como se uma benzedeira tivesse lhe ungido o cenho com um ramo de alecrim cheiroso, lhe servido um chá de cipó.

“O segredo do que faço é se reencantar”, ensina. Seu ritual não tem segredos. Siga-o. Exercite-se todos os dias, pondo-se em companhia de lindezas feitas com as mãos. Podem ser rabecas, coroas, estandartes. Sente-se num banquinho de pau e escute o que lhe dizem os outros. Programe a próxima viagem para um lugar que de fato exista. Invente uma nova estrofe para Peixe Vivo. Você pode. Não deixe morrer a cantiga. E bem-vindo de volta pra casa.

  • À frente da Olaria Projetos de Arte e Educação, criado em 1999, Lia Marchi se tornou uma referência em documentação de cultura popular no Brasil e em além-mar. Em Portugal, é tutelada pelo pesquisador Domingos Moraes.
  • Em 1998, Lia pediu aso amigos que comprassem rebecas produzidas no litoral. Com essa ajuda de custo, conseguiu registrar a voz e a música de violeiros. Ao longo de duas décadas, chegou a 160 depoimentos. “Quarenta deles já morreram”, diz, chamando atenção para a urgência desse tipo de trabalho.
  • Benzeiras - ofício tradicional, é o mais novo documentário de Lia Marchi. Ao todo, 12 documentários estão na praça, disponíveis para serem usados em escolas.
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