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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Houve uma época em que a maior causa dos problemas de saúde era o vento encanado, desbancado apenas pela aids, como brinca Carlos Heitor Cony. Em segundo lugar vinham os gases. De modo ser raro um quintal que não tivesse um pé de alecrim cheiroso, cujo chá tem um admirável poder expectorante, despertando a flatulência qual a fúria dos vulcões. Pergunte à sua avó.

Suspeito que mesmo com toda a ciência não nos libertamos dessas duas crenças, entranhadas em nossas almas e ventres. Do vento encanado nos protegemos fugindo das janelas ou substituindo-as por infames cortinas de vidro, pelas quais os arquitetos terão de dar contas a Deus. Quanto aos gases, copio e colo aqui a teoria de uma amiga: as pessoas gostam tanto de andar de carro porque ao volante podem soltar "puns" à vontade, o que lhes resolve parte dos problemas. Imagine a Visconde de Guarapuava parada às 19 horas do rush. Milhares de condutores solitários. Buzinas para despistar. Em segredo, fazem o quê?

Como não quero criar picuinhas entre a indústria automobilística e os gastroenterologistas, vou me ater às janelas fechadas, à prova de ares insalubres e de conversa fiada. Exato. Nesses quentes trópicos, ficar à janela está associado também a doenças sociais, como mexerico e perda de tempo. É um prenúncio de vadiagem. Repare.

As "teúdas e manteúdas" dos romances de Jorge Amado são sempre janeleiras, com seios arfantes, flor na têmpora e prontas para o desfrute. E a mulher destrambelhada? Seca cabelo na janela, mesmo sabendo que pode adoecer por causa disso. Cá entre nós, acho injusto com as janelas tomá-las por perigo à saúde pública e à moralidade. Tudo bem – delas os suicidas se atiram, dali despencam bitucas de cigarro seguidas de uma cuspida, mas difícil quem não tenha uma boa lembrança vivida em roda das ventanas.

Conto duas das minhas. Há muitos anos, peguei semana de chuva na Praia Grande, na Baixada Santista. Entediados, veranistas se plantavam nas janelas, esperando sol. De repente, um deles começou a entoar "Sonhos", de Peninha, no que foi seguido por um coro informal do HSBC brotado das quitinetes: "Mas não tem revolta não, eu só quero que você se encontre, ter saudade até que é bom..." Foi lindo que nem O casamento do meu melhor amigo, quando o elenco canta "I say a little pray for you" num restaurante. Ai, ai.

A segunda história se deu em Ribeirão Preto, cidade paulista de temperaturas senegalesas e persianas escancaradas. Altas horas, eu ouvia da cama a música que vinha do bar ao lado: "Fio de Cabelo", um clássico que decorei. Toquem no meu velório, por favor. Daquela mesma janela um colega de seminário descobriu o amor. Manhã bem cedo, 25 graus, com tudo aberto para a fresca, ele dava religiosamente "bom dia" a uma Ana que, deuses, ficava no ponto do ônibus, diabolicamente a um metro da vidraça. O padre bem nos tinha avisado dos perigos do vento encanado.

Não debochem – janela é questão digna das Nações Uni­­das. A urbanista norte-americana Jane Jacobs dedica ao assunto algumas páginas do seu incrível livro Morte e vida de grandes cidades. Já na década de 1960, ela percebia que áreas de edifícios sem janelas voltadas para as ruas tendiam a ser menos comunitárias e mais violentas. O que ninguém olhava, ninguém cuidava. De modo que em nome da paz mundial vale a pena se pôr no batente vez em quando, mesmo que seus vizinhos o tomem pelo voyeur Jeff de Janela indiscreta.

Como me disse um dia a fotógrafa Lina Faria, em Curitiba a gente só vê mesmo é velhinhos na janela. De resto, é tudo cortina branca, como manda o condomínio. Vai ver o vento já não lhes mete medo. Sortudos. Em perspectiva, acompanham a sinfonia de freadas e sirenes, mas também babéis de casais de namorados, crianças a caminho da escola, maridos saltimbancos, o anônimo varredor de rua, a venda de entorpecentes, quiçá algum assalto.

Eis a vida. Que os olhos desses veteranos me alcancem na hora em que eu mais precisar.

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