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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Leio que muita gente anda preocupada com o excesso de personagens gritando nas telenovelas. De fato. É só acompanhar um capítulo a esmo para conferir o rodar das baianas, o erguer dos barracos e o bater das tamancas. Como ainda reza que a televisão molda os costumes, em breve nos tornaremos um país de gritões, pondo turistas e investidores estrangeiros para correr.

A primeira vez que ouvi algo a respeito foi em entrevista com uma respeitada estudiosa da influência de filmes e folhetins no comportamento infantil. "Como os atores gritam", irritou-se, farta dos sururus. De modo que logo depois, em uma visita ao Rio de Janeiro, cenário de tantas novelas, fiquei prestando atenção se a vida imitava mesmo a arte.

Fiz minha própria pesquisa. Tirando os motoristas das Vans alardeando destinos como "Roci-nhaaaa" e "Copa-ca-ba-naaaa", voltei, como sempre, maravilhado com os modos cariocas, convencido de que o grito é mais um recurso dramatúrgico do que uma realidade. Bem – pensei assim pelo menos até estar junto dos meus, para os quais reservamos nossos mais sinceros raios e tempestades.

Grito, lá em casa, não é dramaturgia, é rotina. Meus pais são de uma região montanhosa de Portugal onde, para falar com o vizinho, exige-se subir em média 200 degraus. Fica mais fácil abrir a janela e esgoelar, tirando proveito do eco. "Terra à vista", lembram? Suspeito que os decibéis dos portugas provocam as ondas do Cabo das Tormentas.

Pois falar alto virou reflexo adquirido. Meus amigos perguntam: "Seus pais estão brigando?" Não, estão conversando. Ou "seus pais estão se matando?" Não, estão discutindo o que fazer para o almoço. A escala deles não é sonora, é cultural, o que permite afirmar que o uso da voz no relacionamento interpessoal deveria interessar a comerciantes de material à prova de som. Muito podem lucrar vendendo vedações para berros lusitanos; ou para gaúchos, dados a armar pampeiros, julgando-se ainda nos Pampas.

Concordo que o grita se banalizou. Pena. Já foi um assunto sério, investigado por Freud ao descrever a histeria, uma espécie de siricutico de conotação sexual. Inspirou pintores, como Munch, que traduziu mal-estar da civilização na tela "O Grito". E cineastas do naipe de Bergman – diretor de Gritos e sussurros, não raro, por imperícia, colocado nas seções pornôs das videolocadoras. Berrar, quem diria, era pop nos tempos do Tarzan. Sem falar na associação entre soltar o verbo e liberar geral, tema de um clássico do tea­­tro brasileiro dos anos 60, Fala baixo, senão eu grito, de Leilah Assumpção.

Constatado o uso abusivo dos nervos associados às cordas vocais, sugiro uma classificação para o fenômeno. "Fazer forfait", por exemplo, a despeito de sua raiz francesa, é expressão ligada ao turfe, o que sugere bate-boca seguido de relinchos e patadas. "Alarido", palavra antiga, é própria dos idosos ao abrirem as contas de luz. "Salseiro" – que significa "chuva forte e passageira" – está na categoria "Cinco minutos" e tende a ocorrer no intervalo dos comprimidinhos. Dá desmaio. A abstinência leva ao "chilique", parente do "siricutico", surto relâmpago, porém de impacto cinematográfico.

Já "faniquito" vem de fanico, que quer dizer migalha. Equivale a um gritinho básico, direito humano ainda não reconhecido pela ONU. Até o Obama já teve. Da mesma categoria é "ter um piriri", de piriricar, uma impaciência que sobe pela espinha e desemboca na língua. Tem alta incidência nas filas de banco. Quanto ao "piripaque", atenção. É um estágio do "deus nos acuda", um surto mitológico, feito a fúria dos Titãs. Quando acontece, mares se abrem. Pecadores se ajoelham. Coreanos do Norte armam a bomba de Kim Jong.

Pior que isso, sei não, só reunião de condomínio.

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