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      Não estranhem se alguém lhes jurar de pés juntos que viu orixás "flutuando" na fachada de um prédio do Centro de Curitiba, na hora do rush. Fique tranquilo. Não se trata de aparição, nem de miragem provocada por sol escaldante na moringa, embora sejam essas as sensações de quem cruza as ruas Barão do Serro Azul com Carlos Cavalcanti e se depara com Iansã ou Oxum numa vitrine suspensa, magníficas como só as semideusas africanas conseguem ser.

      SLIDESHOW: Veja mais fotos da comerciante Cristina Assis

      Faz meio ano que as manequins estão debruçadas sobre a rua. Pouco tempo, mas o bastante para provocar um zunzunzum da Sapucaí. Dá gosto ouvir as explicações bem temperadas sobre o que muita gente chama de "o mais novo espaço religioso da capital". Há quem diga ser fruto de uma "promessa" de não sei quem em gratidão por uma benesse recebida num dos mais de mil terreiros de umbanda e candomblé de Curitiba e região. Fosse católico, o fiel colocaria Nossa Senhora Aparecida. Como não é, criou um nicho para o seu santo. É de direito.

      Pois a resposta está errada, ou quase. Não se trata de uma ermida disfarçada, mas de um magazine – a Oxum Ateliê –, espécie de maison de alta costura especializada em trajes litúrgicos para cultos afro. É única no gênero, sem concorrência. Pequena e charmosa como um estúdio francês, foi pensada como um lugar em que os fregueses podem experimentar os panos da costa e abadás de forma discreta, longe da vulgaridade do mundo prêt-à-porter.

      Há um ritual durante as provas de roupa. As vestes não podem esbarrar no chão, sob pena de acordar os temporais. É tudo muito íntimo. Tem quem chore ao colocar as túnicas brancas, com as melhores rendas, tal e qual sempre desejou. Nada rouba essa beleza. Nem mesmo os urros vindos da academia de boxe do pugilista Macaris do Livramento, improvável vizinho de porta do Oxum Ateliê.

      Enquanto ali dentro tudo transcorre debaixo do silêncio dos crentes, a já famosa vitrine funciona como uma espécie de "ação afirmativa". Não foi de caso pensado. Na maior parte das vezes, os comércios de produtos para terreiros se instalam em portinhas nos pontos mais escuros do Centro, onde parecem perpetuar a ideia de que o candomblé e a umbanda ainda estão condenados às catacumbas. Os ricos orixás da "Barão" desmentem essa tese.

      Já não era sem tempo. Tudo na loja desqualifica o clichê da farofa, da galinha preta e da macumba. De perto, a sensação de realeza se confirma ainda mais – mal dá coragem de roçar os dedos nas capas de cetim usadas pelas Pombas Giras da umbanda; nos casulos bordados dos Babalorixás; nos ketés finos como cartolas; nos atacãs e nos tolsos, nos kaftas e opariós.

      Tem quem suba as escadas desavisado, é verdade. Aconteceu de uma mulher frisar uma expressão de horror ao se perceber ali, atraída por um bordado em richelieu. Deu a ré. Dia desses, uma freguesa não entendeu por que não poderia usar num baile à fantasia um traje daqueles, com finos tecidos importados de Londres. "Nem pagando?" Não, nem pagando. É a regra, baixada pela dona do estabelecimento, Mãe Cristina, filha da vaidosa Oxum, a cujo parentesco faz justiça.

      Cristina Assis, 38 anos, é natural de Londrina, foi criada parte em Cornélio Procópio, parte em Paranaguá. Em idade de fazer vestibular, mudou-se para Curitiba e descobriu o candomblé, de uma vez para sempre. Iniciou-se. Cedo raspou a cabeça e "ganhou o santo", como se diz dos que descobrem depois dos búzios a qual orixá pertencem, ganhando passaporte para a vida mística.

      Esqueçam a figura da mãe de santo vetusta, que carrega nas costas o peso de uma ala das baianas inteira. Mãe Cristina é um misto da atriz Fernanda Machado com a modelo Luiza Brunet. Sua pedra, ametista. No início, a beleza extraordinária despertou desconfiança entre os sacerdotes, mas é passado, garante. Ela não impressiona apenas pela fina estampa. Quando começa a desossar a sofisticada mitologia dos terreiros, o faz com a verve de uma catedrática. Fala com tamanho fascínio que é impossível não fantasiar ser ela uma reencarnação de Clara Nunes. Só lhe falta soltar o gogó em Canto das Três Raças.

      Essa música, aliás, é sua própria história, como não deixam mentir os olhos puxados herdados das Moemas e das Paraguaçus. Mãe Cris conta com requintes sobre a avó índia que vivia em uma oca. Faz hoje o caminho inverso da antepassada – coloca na floresta da cidade forças da natureza como Ogum, Oxóssi, Omulu. Ergueu para eles uma catedral de vidro, iluminada pelos sinaleiros. E pede que tragam um pouco de paz às encruzilhadas.

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      Cristina Assis

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