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 | Foto: Rodolfo Bührer - Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Foto: Rodolfo Bührer - Ilustração: Felipe Lima

Eu, assim como você, piíssimo leitor, não conheci Jesus. Como bem sabemos, 2 mil anos e uns quebrados nos separam dos acontecimentos que dividiram a história da humanidade em duas, feito uma laranja decepada por um facão. Vlapt! Nesse tempo todo, o rosto do Nazareno foi ganhando a cada época um tipo e um talhe, de modo que temos o consolo de, ao longo de nossa curta existência, colecionar uma galeria de "Jesuses".

Nascido na era da cibernética, passei ligeiro pelo Sagrado Coração da minha paróquia – mirado de joelhos. Logo fui atropelado pelo Redentor da ópera rock Jesus Christ Superstar. Ainda posso ouvir e ver minha mana Cecília numa coreografia herética para apresentar no colégio. "Jesus Christ, Jesus Christ, who are you? What have you sacrificed?"

Aquilo era demais para a época em que Antônio Marcos botava a mão no cinturão de couro para cantar "Hey, irmão, vamos seguir com fé tudo que ensinou o Homem de Nazaré..." Em termos de cruzes e credos, aliás, oscilamos entre a revolução e o relicário. Na adolescência, o Jesus que mais me dizia era imberbe e sorridente – só faltava o All Star. Já a trilha não era "Jesus Cristo não vai passar...", mas o rei Roberto cantando "...tudo que aqui ele deixou não passou e vai sempre existir, flores nos lugares que pisou, um caminho certo pra seguir..."

É apelativo, mas é porreta. Tentei melhorar o repertório estudando a Cristificação do Universo, de Teilhard de Chardin, e sorvendo Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff. De quebra, altos papos sobre A Última Tentação de Cristo, do Scorsese, aquele em que Jesus ganha a inesperada cara do Willem Dafoe. Mas esse Jesus passou, amigo leitor, passou. Dafoe foi substituído pelo astro de Jesus de Montreal, filme de Denys Arcand. A obra mostra as transformações sofridas por um ator depois de encarnar Cristo numa encenação. Graças a ele fui atrás de um Jesus de carne e osso – o Aparecido Massi do grupo Lanteri.

Perdão Marco Zeni, mas Massi é o ator mais popular de Curitiba. Vai na padaria e a atendente sabe que vende pão para Jesus – é para poucas. Aliás, ele mora nas minhas bandas. É lá que o vejo correndo nas ruas, em cima da pinta. "Óia o Jesus...", a gente diz, como se diante da aparição de um anjo loiro, quebrando a rotina da Praça do Atlético – embora o Mestre torça para o Londrina.

Massi não é mais o único Jesus do município. A cidade cresceu. Tem um JC na Boa Vista e outro no Boqueirão, que eu sei. E semana passada conheci o Jesus do Sítio Cercado, o Bairro Novo. O nome do moço é Marcos Antônio Vieira, tem 34 anos, 1,88 metro, 83 quilos, cabelos curtos.

Chegou garoto na vila, vindo de Siqueira Campos, no Norte Pioneiro. Tudo então era plantação de grama. Hoje, é o segundo maior bairro da capital, com 114 mil habitantes. Num único ano, mais de duas mil pessoas se mudam para lá, e não há postinho, nem polícia, nem tubulação de esgoto que dê conta.

Mas Jesus não falta. Ele fez faculdade de Administração, pós-graduação, tem bom emprego e uma casa de encher os olhos. Um dos motivos de sua teimosia em permanecer é que ali, há uma década, não é só o filho trabalhador do seu Francisco e dona Maria Olésia: ele é o cara que na Sexta-Feira Santa mobiliza 7 mil pessoas na Rua da Cidadania do Bairro Novo.

Tirando o aparelho nos dentes, bem parece com Jesus. A peruca – que já lhe caiu da cabeça numa das muitas descidas da cruz – ajuda. A piazada não perdoa: "E aí, Jesus, susse!" Marcos não é de se gabar, mas sabe o que representa para os mais jovens. Quando faz sua cena preferida – a da Agonia no Horto das Oliveiras, em plena Avenida Tijucas do Sul – certamente há quem lembre que Cristo venceu cursando escola pública e morando longe.

A propósito, do rápido colóquio com o Jesus do Bairro Novo, concluí seu parentesco com Jesus de Montreal: Marcos nunca mais foi o mesmo depois de ganhar o papel principal. Horas antes do espetáculo, inclusive, recolhe-se – tal e qual certa vez. Lá fora, o povo se achega. Tem quem suba nalguma laje para ver. O Márcio vira Caifás, Valtinho vira Judas. Marcos então faz milagre dos lençóis de suas vestes. O Bairro Novo ganha com 2 mil anos num minuto – graças ao apoio de amigos como o açougue Big Boi e o salão Requint’s, entre outros.

Fosse eu da organização, só mudava uma coisa: tascava Roberto Carlos na trilha sonora: "Certo dia um homem esteve aqui, tinha o olhar mais belo que já existiu..." É para chorar, sabe. Hoje é dia – é Sexta-Feira da Paixão.

José Carlos Fernandes é jornalista.

Serviço: encenação da Paixão do Bairro Novo. Hoje, às 10 horas, na Rua da Cidadania do Bairro Novo. Entrada franca.

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