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Um homem vê, da praia, uma baleia, e seu coração emerge de um lugar obscuro. Ele está salvo. Quer saltar da cadeira, fugir do guarda-sol, molhar os pés na mesma água que sustenta e transporta o animal. Mas não dá. O homem segura no colo a sua filha, um bebê, e ela precisa dormir. Tanto faz que a espuma se erga no mar, imperiosa, perturbando a linha do horizonte. O bebê dorme. Quem sabe não sonhe com baleias? Minúsculos, coloridos, saborosos cetáceos de gelatina.

O homem se livra dos óculos escuros, avalia seus vizinhos de esteira, alguém mais viu o bicho? Não. Metade das pessoas navega no espelho de seus celulares; metade se divide entre os que cochilam e os que vigiam crianças. A baleia, portanto, é daquele homem, e só dele, e é em nome desse interesse particular que ele se apossa dela.

Clarice Lispector, certa vez, escreveu que toda baleia é uma montanha de inocência

Na impraticabilidade de se levantar, marchar até a água e nadar com sua baleia, o homem fabula. Imagina o que seria essa criatura gigantesca, e a possibilidade de sua consciência, o tamanho de seus desejos. Por que se arrisca entre os humanos, tão perto da areia? O homem lembra que Clarice Lispector, certa vez, escreveu que toda baleia é uma montanha de inocência, e ele concorda com isso. Embora saiba que jamais poderá conhecer o que se passa no interior sombrio daquela caverna semovente, submarina. Talvez até haja luzes por lá, lampiões acesos e óleo perfumado queimando, dormitórios, escadarias e bibliotecas — ninguém ficará sabendo. E talvez o próprio bebê no colo deste homem esteja lá dentro, agora mesmo, enquanto dorme, e sonha.

O homem decide que o melhor a fazer, quanto à passagem daquela baleia por sua vida, é observá-la. Aproveitar a chance que lhe coube, a exclusividade que lhe destinaram. Assim, examinando-a bem, ele nota que há algo errado. A baleia não está se movendo. Não submerge nem volta à tona, conforme julgou, dois minutos antes. Não. Ela está parada, exatamente como ele. É o mar que se move ao redor e debaixo dela. E o movimento do mar, em relação à imobilidade da baleia, tem um quê de mau agouro. Seria ela um cadáver à deriva?

Esta é a primeira baleia que o homem avista e, se ela estiver morta, é certo que será um péssimo presságio. Uma baleia defunta, flutuando diante de um balneário lotado, num feriadão de sol. Uma baleia que é o sepulcro de si mesma, uma imensa massa oca, feita para abrigar os restos de nossas expectativas, o anúncio de um evento extraordinário, uma alegria inextinguível, o grande futuro, o progresso que não vem, pois encalhou, jamais acontecerá.

Mas não é isso, e o homem não demora a perceber seu erro. Não, não se trata de um animal. Foi uma ilusão, causada pelo sol ou pelo sono, o cansaço da vigília, da esperança, da paternidade. Sua baleia é só um rochedo, uma pedra de aparência ovoide, que o mar, em dias de menor exuberância, deixa parcialmente descoberta.

O que não muda nada. Porque, nos dias seguintes a essa visão, o homem continuará a distingui-la a distância, aquela baleia de pedra e brilho, a força fixa na linha do horizonte, indiferente ao Atlântico Sul, este oceano que sobe e desce por seu corpo, como se acariciasse uma montanha.

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