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Da pia da minha cozinha, no Centro, vê-se a Serra do Mar. Mas isso nos dias limpos, tão raros em Curitiba. Em geral, ao preparar o almoço das crianças e lavar os pratos, tenho de me satisfazer com a vista ao meu redor: uma dúzia de estacionamentos. Durante a semana, eles estão lotados, e o reflexo do céu em tantos para-brisas me dá a sensação de estar sendo vigiado pela própria paisagem. Aos domingos, não. Os automóveis somem, revelando a grande planície de asfalto que a cidade se tornou.

Foi vagando por um desses estacionamentos vazios que a vi. Fechei a torneira. Larguei a panela que eu desengordurava. Debrucei-me sobre a pia. Era uma noiva, caminhando devagar, com o passo determinado, porém mecânico, das aparições sobrenaturais. Só que o caso não era de assombração. Ela levava o véu enrolado nos braços, numa atitude claramente mundana. Queria isolar, das impurezas do solo, a brancura que a vestia, coisa que jamais preocuparia um fantasma. Zombando do pudor higiênico de nossas tradições, uma alma penada faria questão de arrastar a longa cauda pelo pó que nos espera.

a noiva estava viva. Sozinha num estacionamento do Centro. Num domingo nublado

Ou seja, a noiva estava viva. Sozinha num estacionamento do Centro. Num domingo nublado. E parecia meditabunda, o que é compreensível numa noiva. Ou talvez não estivesse sozinha. Perto dela havia um carro, tão majestoso que já era uma companhia. Analfabeto automobilístico, só digo que o carro era branco, imenso e conversível, e que trazia a capota fechada. Por um segundo, aliás, imaginei que o próprio automóvel estivesse lá para se casar com aquela mulher. Sua ignição, seu câmbio, seu volante, tudo nele ansiava pelo toque enluvado dos dedos dela.

Novos personagens, no entanto, saíram das partes cobertas do estacionamento, com tripés e rebatedores. Em torno da noiva e do carro, montaram um estúdio fotográfico. E um homem agitado, portando uma câmera, passou a dar instruções à moça, que o ouvia ainda meditabunda, enquanto a varriam os pincéis de maquiagem.

Ela apoiou os quadris na lateral dianteira do carro, assumindo a expressão corporal de uma candidata à felicidade, aquela postura tensa que adotamos nas fotos de casamento, e acho que então sorriu, não vi direito, a pia da minha cozinha estava longe demais daquele sorriso. Talvez seja uma modelo, pensei, e só se passe por noiva.

Alguém se meteu pela janela do carro e acionou algum dispositivo fundamental. Vi aquela capota ir se retraindo sem pressa, até revelar ao céu, branco, um interior em couro escandalosamente vermelho, como uma bolsa de Pandora que se abrisse pela enésima vez na história do mundo, obedecendo não a uma mulher, mas a um motor, um mero comando de repetição. O corpo da noiva se abria junto, só que para as lentes, e até o diadema em seus cabelos, respondendo ao primeiro flash da tarde, brilhou intensamente, também sorrindo.

Voltei ao serviço doméstico. Reabri a torneira sobre a gordura das panelas. Lá fora, começou a garoar. No estacionamento, o povo catava suas tralhas e corria em busca de abrigo. O único a ficar na chuva foi o carro, incapaz de se mover sozinho. Sua capota, no entanto, lentamente se fechava.

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