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Houve uma época em que era possível cruzar todo o Centro de Curitiba a pé, de madrugada, e sobreviver à escuridão. Quietas, as ruas podiam ser percorridas sem susto, e um mero passeio do Largo da Ordem à Praça Rui Barbosa ganhava uma dimensão meio épica, meio onírica, ao mesmo tempo em que nos proporcionava encontros místicos ou cômicos com espectros de diversas naturezas. Eu me sentia num romance de cavalaria, numa jornada quixotesca pelo deserto urbano. A cada esquina, uma nova miragem se fixava à minha memória, tornando-se um breve capítulo tanto da minha biografia quanto da história desta cidade.

No fim da década de 80, bem diante da Catedral, onde hoje há um canteiro de cravos-de-defunto, testemunhei um duelo ao nascer do sol. Dois homens se enfrentavam verbalmente, e um deles, quase um menino, quis saber do outro, mais maduro: "O que você prefere: tiro na cara ou facada no pescoço?" O desafiado respondeu, impassível: "O que te sair mais caro". Terminaram abraçados, namorando nos degraus do templo.

Na Vicente Machado, faz 20 anos, cruzei com um gigante que, carregando nos ombros um anão, me perguntou se eu não queria beijar o homenzinho. Não quis, mas vi que minha recusa, em vez de ofender o anão, pareceu aliviá-lo. Sereno, me contou estar sendo levado pela noite contra a sua vontade. Refém do afeto daquele amigo bêbado e imenso, tudo o que podia fazer era esperar pelo fim de sua embriaguez ou de seu amor. Na despedida, me lançou um beijo aéreo, digno, como se desfilasse em um carro alegórico.

Inesquecível também foi o sabá que flagrei na Praça Osório, certa madrugada do século passado. Para suportar o inverno, um grupo de quatro travestis catou meia dúzia de folhas secas de butiazeiro e, com elas, acendeu uma fogueirinha. Um litro de conhaque depois, já queimavam as próprias roupas e dançavam nuas ao redor do fogo, as faíscas voando entre as palmeiras.

Noutra ocasião, na Boca Maldita, topei com uma jovem lindíssima, que trazia nas mãos uma vasilha plástica cheia de sopa de feijão gelada. Pretendia distribuí-la entre os sem-teto do Centro, e confessou que aquilo era parte de uma promessa que fizera para ganhar o concurso de Miss Curitiba. Como não encontrou ninguém além de mim, me pediu o grande favor de experimentar a refeição mágica, garantindo sua vitória.

Agradeci, mas recusei, e ela não insistiu. Exausta, despejou o conteúdo da vasilha numa floreira diante do Garcez, e nunca mais se ouviu notícia dela ou de sua beleza.

Houve também o casal de crianças que, na descida da Muricy, me perguntou se eu não poderia fazer a gentileza de casá-los. Não consegui dizer não, eram criaturas encantadoras. Improvisei um discurso, rezamos o Santo Anjo, puxei os juramentos necessários e abençoei sua união. Eles se beijaram no rosto e logo partiram para a lua-de-mel, levando todo o dinheiro que eu tinha na carteira.

Já no calçadão da Senador Alencar, um homem ansioso me abordou, com uma bola debaixo do braço. Insone, procurava com quem jogar futebol. Como eram 3 da manhã, e eu não queria perder o madrugueiro para o Capão Raso, disse a ele que não dava. Mas o cara implorou, pediu que ao menos eu batesse três pênaltis, e acabei topando.

Ele se postou entre as colunas de um prédio velho. A meta, uma porta de aço. Temendo o barulho, chutei fraco e desperdicei as duas primeiras cobranças. Comovido, o goleiro decidiu me ajudar e deixou passar a terceira.

Depois, ao comemorar meu gol, me abraçou com força, sussurrando em meu ouvido uma máxima que, hoje, me soa estranhamente familiar: "A obra é sempre inferior ao sonho, campeão".

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