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Quando criança, ouvi de um velho benzedeiro, poeta de beira de rio, uma inesperada dica de fundo místico. Nunca apague o fogo com os pés, ele me disse. Em seguida, tirou da boca o palheiro, fumado até a ponta, e aguardou pacientemente, até que a brasa se extinguisse.

Escondeu a bagana numa caixa de fósforos e, com um sinal-da-cruz, encerrou o ritual. Jamais esqueci a beleza de seus gestos ou de seu conselho, embora nunca o tenha seguido: poucos anos depois, eu já pisoteava os meus cigarros industrializados, sem culpa nenhuma. Lamento, mas a poesia nem sempre resiste à vida prática.

Conto esse caso porque quero falar de um vizinho. Na verdade, não o conheço, nem sei onde mora. É só alguém que costumo encontrar pela rua, aqui perto de casa. Um homem que, todas as manhãs, desperta para o mundo como se emergisse de um vulcão.

Ele vive irritado, o rosto vermelho, a barba de dois dias tão rala e branca quanto os cabelos. Nunca o vi com outra roupa que não fosse um terno cinza de corte antigo, limpo, só que já bem gasto. Sempre com o cigarro nos beiços, desce fumegando as ladeiras do São Francisco, rumo à Boca Maldita.

Fala sozinho, numa língua que não entendo, mas que, na minha ignorância, fantasio ser o aramaico. Às vezes, o homem parece rezar, aos sussurros; noutras, discursa aos gritos, tomado por um ódio incomum. É quase um dragão dramático, cuspindo suas palavras de fogo e pedra.

Até aí, nada de novo, vocês dirão. É inclusive um clichê psiquiátrico, o louco que, em público, despacha com os anjos ou discute com os demônios. E era exatamente essa a minha opinião, até um menino, desses que batem ponto em saída de padaria, me chamar a atenção para um detalhe original.

Estávamos na esquina da Saldanha com a Ermelino. Eu dava ao guri o troco do meu pão, meia dúzia de moedas amarelas, quando aquele homem passou por nós, as frases se misturando ao seu rastro de fumo, um poema composto em fumaça. Divertido, o menino me perguntou se eu já havia reparado no cigarro do velho. Eu disse que não, o que ele tinha de diferente?

É sempre o mesmo, contou. É o mesmo cigarro, e sempre o mesmo fogo que, há anos e anos, jamais o consome. O dragão do São Francisco, segundo o menino delirante, estaria preso no tempo, descolado da nossa realidade, vivendo eternamente o mesmo segundo, e graças ao mesmo fôlego. A vida, para uns, é uma erva que se recusa a arder.

Ri, chamei o guri de doido e vim embora. Sem querer, segui o pobre dragão até a Santos Dumont, pois íamos para o mesmo lado. Ele se acomodou na Pracinha do Amor e, depois de uma longa tragada, tirou da boca o cigarro, fumado até a ponta, e aguardou pacientemente, na esperança de que a brasa se extinguisse.

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