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Fé nunca tive, nem me cobrem. Criança, ao rezar, já trocava as vírgulas por pontos de interrogação: Pai nosso? Que estais no céu? Era quase uma última chamada. Eu mantinha acesa uma luz fraca, à cabeceira, para o caso de Deus aparecer. Um abajur de plástico em forma de tucano. Mas não, não quero falar de aves, de luzes, de nada. Estou apenas lembrando da infância. Um período curto, não de fantasias, e sim de caladas elucubrações.

Bem pequeno, eu madrugava só para ficar deitado, quieto, ouvindo a passarada lá fora. E pensava: de que critério se vale Deus na hora de distribuir pelo mundo os passarinhos? Pois não era aceitável que Ele simplesmente polvilhasse de sabiás um bairro, assim como um confeiteiro caprichoso que derrama açúcar sobre um bolo quente. Não, a ideia de que tal critério pudesse ser meramente estético, decorativo, me apavorava. Afinal, se os passarinhos fossem só pontinhos musicais móveis, caixinhas de corda, cores portáteis, que tipo piorado de pontos seríamos nós?

Os pactos firmados na infância, sei agora, é que vão definir um cronista

Coisas de criança. Quatro décadas depois, até valem meia crônica. Na época, claro, eu não conhecia aquele poema de Kipling em que o diabo, ao ver Adão rabiscando o barro ao pôr do sol do Éden, lhe soprava no ouvido: é belo, mas será arte? Mesmo assim, já pressentia um Deus artista. Enquanto isso, no escuro, o tucano mefistofélico só piscava e chalreava ao meu lado, me convidando a fazer a crítica da Criação. Sem querer, topei. Cresci e passei a escrever crônicas. Os pactos firmados na infância, sei agora, é que vão definir um cronista.

Tarde dessas, era dia de novena no Alto da Glória, e minha filha mais velha me acompanhava entre as tendas de pastel da Ivo Leão. De repente, de uma fresta no muro do Cemitério Luterano, começaram a sair abelhas às centenas, parecendo confusas, mas decerto obedecendo a um comando lógico poderoso, impenetrável à indolência dos organogramas humanos.

Eram jataís miúdas, inofensivas, sem ferrão. Por isso nos aproximamos do enxame, curiosos como filhotes de urso. As abelhas tinham moldado um longo tubo de cera, no formato perfeito de um falo ereto, e por ali, se libertando das entranhas da pedra, jorravam aos montes, feito almas em êxtase, me fazendo pensar em Doré, em Dante e em diversas analogias místicas e sexuais, todas manjadas. Era a criança católica que fui, se manifestando.

Minha filha, porém, me chamou a atenção para o mel que devia haver dentro do muro. Concreto doce, pai! Lápide recheada de energia vital, como uma bolacha gigante! E essa imagem, tão bonita e maluca, me remeteu à história de Sansão, que eu tanto gostava de ler, quando menino. Lembrei do favo de mel que o herói colhe no crânio do leão que ele próprio matou, a mãos nuas. Eu achava aquilo lindo e inverossímil, as abelhas que não se opunham ao saque, a colmeia nascida na carcaça, o zumbido inútil dos insetos. E era essa mistura que me seduzia, a beleza, o absurdo e a mentira, a ficção a serviço de uma meta indefinida. Coisas de menino.

Sim, alguma criança sempre salvará o cronista. Pois se a infância, como já se disse, é uma guerra, o adulto, por sua vez, continuará lutando para compreender as batalhas que já perdeu.

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