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Não faz muito tempo, minha filha e eu vimos uma moça escavando um canteiro na Praça Santos Dumont. Para a menina, aquilo foi um acontecimento. A outra, adolescente, agia como uma toupeira nervosa, e usava as mãos de forma selvagem, imprudente, sem medo de machucá-las. Era um dia frio, e a primeira coisa que, nela, nos chamou a atenção foi o azul de seus pés, descalços.

Só depois reparamos nas flores. Não me perguntem a espécie, acho que eram amores-perfeitos, roxos. Plantados havia menos de uma semana, foram arrancados do chão, um por um, e largados na grama, sobre toletes de terra recém-adubada.

A cena me lembrou de Murilo Mendes. Num breve poema de desamparo, ele escreveu que os cadáveres das flores são os mais abandonados. Repeti aqueles versos para minha filha, que os estranhou: como assim, pai? Admiti que não sabia responder.

Era hora do almoço, e tinha muita gente na praça, observando a moça. Mesmo assim, ninguém fazia nada, nem para protegê-la, nem para salvar as plantas. A princípio achei aquilo um absurdo — até perceber que eu também nada faria.

Éramos vários homens lúcidos por ali. Uns fumavam, outros esperavam a comida assentar no estômago antes de voltar ao trabalho. Mas ninguém pensou em se aproximar daquela moça de quatro, confusa e quase sem roupa; ninguém a impediu de destruir as flores que a prefeitura, com o dinheiro de tantos outros cidadãos produtivos e lúcidos da nossa cidade, havia feito crescer entre nós.

Como desculpa, me convenci de que não havia realmente como me envolver num assunto tão delicado. Questão de prioridades. Eu precisava levar minha filha à escola, e o mais aconselhável era irmos embora. Fomos.

Mais tarde, quando voltamos a passar por lá, reencontramos a mesma personagem, só que já pacificada. Seus trajes ainda eram mínimos, e o frio, maior. A noite caía, e ela se empoleirava num banco da Pracinha do Amor, sozinha, solfejando uma canção que não reconheci. Era quase um esqueleto, uma caveira cantora, a pele fina ressecada, a boca murcha, e os olhos, dois buracos de luz. A diferença mais marcante estava mesmo em seus cabelos: uma coroa vagabunda, feita com as pétalas colhidas horas antes.

Pensei nos troféus floridos, nas líricas guirlandas de Ofélia, e no que a pobre moça louca, órfã de Polônio, disse ao irmão Laertes, quando entregou a ele um buquezinho de amores-perfeitos: aquelas flores, garantiu, fariam bem aos seus pensamentos. Infelizmente não fizeram.

Atrás da moça, na praça, na parede lateral da sinagoga Francisco Frischmann, uma pichação comovente, hoje coberta de tinta branca, dizia: "R., papai te ama". Reli aquilo, botei minha filha na garupa e, naquele minuto, toda a cidade, suas ruas, praças e casas, tudo me pareceu um vasto jardim abandonado.

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