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Quando o encontrei eram oito da manhã, a restinga suja como sempre, a praia coberta de plástico e conchas. Não achei que estivesse morto, mas parecia suficientemente gelado. Assustava. A barba por fazer, o piche nos pelos grisalhos do peito, a cueca frouxa e molhada, talvez pelo mar. Atrás de suas orelhas, murchavam dois grandes hibiscos amarelos, e outras flores, menores, morriam ao seu redor, entre seus pés descalços e várias garrafas quebradas de batida de coco.

Eu o tinha visto pela última vez na noite anterior, num bar próximo. Bebia com um grupo animado de homens e mulheres, uma delas entronada em seu colo. Ele aparentava felicidade, a camisa desabotoada e a mão da moça lá dentro, brincando com a corrente dourada em seu pescoço, o crucifixo bem visível, item mais de ostentação que de fé. Tomava um uísque sem gelo, o litro sobre a mesa e todos os chopes na sua conta. Feliz, cantava velhos sambas, sucessos de 30 anos atrás, mas ninguém ali sabia daquelas canções, apenas fingiam segui-lo em algum refrão menos obscuro, entoando comoventes onomatopeias.

Ah, as amizades instantâneas. Pouco antes, o sol se punha e ele conhecia aqueles sujeitos no calçadão. Eu os vi dividirem um baseado, cada um com sua lata de cerveja. O desconhecido num banco de concreto pichado, a calça de tergal e as meias arregaçadas, namorando a linha do horizonte, o oceano indiferente. No colo, a pasta de couro pesada já parecendo mais leve.

Soube que, no meio daquela mesma tarde, o forasteiro já havia perturbado o povo das peixarias. Causou desconforto no mercado, segundo me contaram. Checava os barcos vazios atracados na praia, mas em busca de quê? Tocava as redes de pesca postas a secar entre os coqueiros como se fossem as cordas de um instrumento mágico. E, com a boca, improvisava melodias que imaginava extrair do náilon esticado.

Passei por lá eram duas horas e o flagrei chateando os pescadores atarefados à beira-mar. Nem o olhavam, apenas o ouviam delirar. Ainda alinhado, o homem mostrava a todos um pedaço de papel retirado da pasta, uma ou outra foto, o relógio de ouro, e fazia perguntas. Quieta, a turma só balançava a cabeça negativamente, a faca nas mãos, descamando os peixes do dia. Ele se exasperava, largava suas coisas pelo chão, não as recolhia.

Já no almoço estava avoado. Comeu na mesa junto à minha. Ou melhor, pediu uma pescada à milanesa, com fritas, arroz e feijão, e ficou lá, desfiando o filé com o garfo enquanto matava uma caipirinha. Pagou a conta e foi embora, o colarinho suado, o paletó nos ombros.

Dizem que mal desembarcou na rodoviária, naquela manhã, vindo de Curitiba, de terno e gravata e tão bem penteado, cheirando a sabonete, já se fez notar em todo o balneário. Era ver uma porta aberta e entrar. Visitou o posto, a padaria, a farmácia, as lojas de artesanato. Um cara conversador.

Eu o vi pela primeira vez 24 horas antes de encontrá-lo na praia. Impecável: gel no cabelo branco, roupas caras, aliança, sapatos envernizados. Saí do meu prédio e, por acaso, cruzei com ele, que educadamente me parou. Pediu licença, me mostrou o retrato de três crianças – uma delas, ele próprio –, me exibiu o relógio, me informou as horas, disse que tinha pouco tempo e que todos os seus bens cabiam naquela pasta: fotos, documentos, joias, armas, cadernos, cartas, canetas, dinheiro, escrituras. Estava se desfazendo de tudo. Admitiu ser uma liquidação ambulante e me perguntou se eu não teria algum interesse num homem liquidado.

Respondi que não, mas menti. Como veem, acabei roubando tudo o que era dele. Menos o nome e a vida.

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