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Passei a semana caçando assunto para uma crônica de ano-novo. Varri a cidade atrás de uma metáfora de esperança, um personagem que me fizesse recuperar a cor depois do longo mergulho em apneia que foram os últimos 12 meses. Em nenhuma praça achei quem eu queria, em rua alguma cruzei com um santo que me concedesse a graça de uma ideia, a iluminação de uma mentira bem-intencionada. Porque, sorte nossa, nem sempre é preciso lançar mão da verdade para se urdir, com a seda dos dias felizes, uma capa que nos sirva e embeleze a todos.

De qualquer forma, estou sendo honesto ao contar que fracassei. Curitiba me surgiu como um deserto de alegorias positivas. A cada noite, eu me postava no terraço do meu apartamento na Ébano Pereira, à espera de um milagre narrativo, um olho no horizonte cada vez mais curto que nos cabe, e outro no espaço. Não vi sinal de disco voador, risco de cometa, anjo travestido de musa, nada, nem lua, nem estrela. Apenas a imensidão nublada.

Só agora, agarrado à cauda de um ano que já se arrasta, é que eu, ao me sentar à mesa do escritório, disposto a redigir um insincero pedido de desculpas, fui tocado pela fortuna. Olhei pela minha janela, esta janela pequena de um quarto pequeno, originalmente projetado para ser uma triste "dependência de empregada", e dei de cara com o que buscava.

Já falei deles uma ou duas vezes: meus vizinhos urubus. Há anos moram na cobertura do prédio ao lado, onde tomam sol, chuva e sangue a poucos metros de mim, não raro analisando meus vagos movimentos diários de desânimo ou resistência, esta vida que vou digitando no computador.

Não nos entendam mal: o interesse dos urubus por minha pessoa não nasce no estômago desses animais. Não é que torçam pelo meu passamento diante da tela em branco; simplesmente se aproveitam de nossa proximidade, e da boa relação entre nós, para estudar, neste cronista, o elemento humano que tanto os fascina e aparvalha.

Eu me submeto com prazer a suas pesquisas. Só que, dessa vez, não se tratava bem disso. Nem sequer reconheci o bicho que me observava ali, da sombra da caixa d’água. Era um filhote já graúdo, mas ainda embranquecido, um monte disforme de penas grisalhas, as asas e o bico semiabertos de perplexidade ante a minha aparição.

Acenei para ele, até disse oi, e perguntei por onde voavam os seus pais. Ele não respondeu, e nem eu esperava uma resposta, faz tempo que parei de cultivar delírios franciscanos. Mas a ave reagiu à minha curiosidade. Incapaz de caminhar ou lançar-se nos ares, fugiu, pulando feito uma mola, até sumir na escuridão sob a laje. Lembrava uma marionete mal-acabada nas mãos de um titereiro aparentemente inábil. Difícil acreditar que, em breve, este mesmo boneco desengonçado estará no céu, reinando elegante, com sua dor estratosférica, sobre nossas dorzinhas rasteiras.

Os áugures, antigamente, adivinhavam o futuro a partir da evolução dos pássaros sobre suas cabeças. Mais realista, arriscarei minhas previsões — menos augúrios que desejos — com base no que temos para hoje: os saltos de um urubuzinho torto.

Nunca gostei de efemérides, celebrações, eventos especiais. Sempre preferi os dias simples, em que a rotina nos protege, meio sem querer, da teatralidade às vezes nociva das cerimônias e convenções. Gostaria de prever, portanto, um ano feito só de dias simples e desmontados, que saíssem do breu para a luz, e da luz para o breu, até que se descobrissem naturalmente voando, para de vez em quando voltarem à nossa janela, trazendo no bico o espólio de um lixão qualquer, mas, no brilho negro de suas penas, alguma notícia das nuvens.

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