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Pretendo escrever sobre a memória. As ideias que quero desenvolver se acumulam no bloco de anotações mental em que vou rascunhando temas para esta coluna. Sobre a memória, poderia escrever várias vezes. O que seria uma ironia, já que vivo com a impressão de estar esquecendo coisas demais. Começo a ler um livro ótimo: Eles Foram Para Petrópolis, dos jornalistas Ivan Lessa e Mario Sergio Conti, e um dos textos me causa uma impressão tão forte que determina o rumo a tomar.

Conti descreve um passeio por um bairro de São Paulo. A princípio, não há muita nostalgia, mas sim a curiosidade de rever um lugar familiar que mudou com os anos. A memória é a nossa capacidade mental com maior poder de desencadear emoções. Memória, saudade, nostalgia. Memória, nostalgia, tristeza. Memória, dor, alegria. O autor do texto cai na armadilha. "Gosto de revirar dentro do peito as emoções que me voltam desses antigos caminhos, com dores antigas e antigas alegrias, que já perderam umas e outras a sua força." Para em frente do imóvel em que morou e, ao vê-lo, se recorda do filho: "Ainda não me acostumei com a ideia de que uma criança encaracolada que a gente borrifa de água e deixa secar na grama, antes da sopinha da tarde, de repente cresce por conta própria, faz a barba, bota a chave da casa no bolso, fuma , trabalha, sofre".

Lembrava de ter lido o texto em 2000 e achado tocante. Descubro agora que Conti reproduziu uma crônica de Elsie Lessa. "Todinha copiada", diz ele explicando a homenagem que fez para a cronista, que estava morrendo de câncer. Era Elsie que falava do menino. O menino era Ivan Lessa.

Não sei bem por que, descobrir que era uma mulher que se recordava do filho quando pequeno me comoveu ainda mais. Será que isso não acontece repetidamente com as mães, mesmo depois que os filhos começam a envelhecer? Ela olha para o adulto e, involuntariamente, sua mente recupera a imagem do menino que protegeu, ninou, acarinhou (meus filhos são pequenos — por enquanto só posso supor que isso acontece). Filhos fazem o mesmo com os pais: no relacionamento entre um adulto e seu pai idoso a memória da infância se intromete, às vezes confundindo, às vezes servindo de freio a alguns atos impulsivos.

A memória pode ser suave ou violenta. Insinua-se como uma sensação vaga, uma pequena viagem mental. Ou é despertada violentamente por uma coisa qualquer que cruza nosso caminho e aí ela vem tão forte que não conseguimos controlar. Se o ser humano é 70% água, deve ser 29% memória. Reprocessadas, confundidas, manipuladas, as informações acumuladas fazem de nós o que somos.

Se queremos matar alguém, temos de esquecê-lo. Mas, nesses casos, esquecer é difícil. Tentamos, tentamos e às vezes achamos que conseguimos. Aí, durante um passeio, uma sessão de cinema, a leitura de um livro, um detalhe mínimo ressuscita a lembrança e o "morto" volta para nos atormentar. Melhor é entrar em um acordo com aquele que nos incomoda (às vezes por causa da saudade), fazer as pazes, conformar-se com a presença de seu fantasma. Melhor é perder a ilusão de que o que está esquecido está morto. Não controlamos nada, muito menos a memória.

* * *

A paulistana Elsie Lessa escreveu durante mais de 50 anos. De 1964 a 1972, a Gazeta do Povo publicou suas crônicas. Ela morreu em 2000. Com sorte, pode-se encontrar nas livrarias seu livro Canta que a Vida é um Dia.

Marleth Silva é jornalista.

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