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Ah, que diferença faz um rostinho bonito. Que o diga Ricardo III, o rei da Inglaterra que passou centenas de anos sendo visto como um bandido miserável. Seu esqueleto – como a essa altura o leitor já deve saber – foi encontrado debaixo de um estacionamento na cidade de Leicester, no norte da Inglaterra. A partir dos ossos, os cientistas comprovaram o que já se sabia (que Ricardo tinha uma escoliose severa que deformou seu tronco) e anunciaram uma novidade (o malvado tinha um rosto simpático).

A simpatia, sabemos bem, é uma arma poderosa. Como resistir a pessoas simpáticas, com rostos que nos dizem que são inofensivas? Quantas vezes eu, você, todo mundo, baixamos a guarda diante de uma face simpática?

Até agora só os membros de uma sociedade criada para defender a memória do soberano do século XV insistiam na tese de que Shakespeare difamou o rei. Depois de conhecida a imagem do rosto real, obtida através de reconstituição, a dúvida se instalou mundo afora – se Ricardo não tinha cara de facínora, ele podia ser mesmo tão terrível quanto pintou Shakespeare? É uma motivação fraca para uma revisão histórica, mas está funcionando.

Diríamos hoje que Ricardo foi vítima da má vontade da mídia. E que mídia! Os escritos de Shakespeare, bem sabemos, são capazes de criar ou destruir reputações. Para azar de Ricardo, uma das frases mais inspiradas da literatura mundial abre o texto em que suas malvadezas são relatadas: "Agora o inverno do nosso descontentamento foi convertido em glorioso verão por este sol de York, e todas as nuvens que ameaçavam a nossa casa estão enterradas no mais interno fundo do oceano". Também para azar de Ricardo a peça maravilhosa transformou-o em um dos personagens preferidos dos grandes atores. De Laurence Olivier a Kevin Spacey, de Ian McKellen a Al Pacino, todos quiseram interpretar o malvado corcunda que seduz a viúva do irmão e aprisiona os sobrinhos em uma torre para matá-los.

Ricardo III é uma mania que cultivo. É difícil amar um canalha, admito. A gente se pergunta por que tanto fascínio por um bandidão. Como para mim ele é um personagem literário, fico menos desconfortável em admitir a compulsão de ler ou a assistir tudo que diz respeito a ele.

Um amigo me diz que no Brasil a simpatia é uma qualidade excessivamente valorizada. Boas pessoas e profissionais competentes ficam em desvantagem nos ambientes em que circulam se não forem naturalmente simpáticos. Os distraídos, os tímidos e os muito sérios perdem pontos mesmo que sejam honestos, inteligentes, bem intencionados. Tem toda razão o meu amigo. Afinal, vivemos em um país onde a alegria e a descontração são motivos de orgulho nacional. Não que os mais sisudos estejam condenados à desgraça, mas eles podem, sim, ser vítimas de algumas injustiças.

Segundo os fãs de Ricardo III, ele é um grande injustiçado. Conspirou contra ele o fato de ter sido o último rei de uma família de nobres (os Plantagenetas, substituídos pelos Lancaster, que queriam acabar com a reputação dos antecessores) e de ter uma deformação física. Shakespeare aproveitou a suposta feiura do rei para transformá-lo em um monstro.

Agora, quem diria, o "erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes de tempo para este mundo" está tendo uma segunda chance aos olhos do mundo porque se descobriu que ele não era tão feio assim, tão antipático assim. É uma bobagem, mas é humano.

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