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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Em um livro lançado no Brasil no fim do ano, o americano Bill Bryson conta a história da casa, da moradia inglesa. É um relato repleto de curiosidades sobre cada cômodo de uma residência. Bryson parte de sua própria casa, construída por um vigário da Igreja Anglicana em 1851. Conta ele que os clérigos daquela época levavam uma vida invejável. Pouco trabalho tinham com os fiéis: a vida religiosa das comunidades rurais era modesta, se limitava a ir aos cultos aos domingos, e muitos vigários nem se davam ao trabalho de preparar um sermão. Escolhiam um, prontinho, de um livro de sermões que era o amigo inseparável do pastor sem inspiração. Alguns tinham tão poucos fiéis na comunidade que houve até o caso de um vigário de Yorkshire que transformou metade da igreja em... galinheiro.

Então, com o que se ocupavam os pastores anglicanos?

Alguns deles souberam fazer bom uso daquela combinação que quase todo mundo sonha em ter na vida: tempo livre e sustento garantido. Lá vão exemplos coletados por Bryson e que me parecem mais interessantes: o vigário Laurence Sterne escrevia romances, o mais famoso deles sendo A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristan Shandy, cuja edição brasileira parece estar esgotada. Outro inventou o tear mecânico, que desencadeou a revolução da indústria na Inglaterra. Houve um que criava cães e é o "pai" da raça de cães terrier. O vigário Thomas Malthus escreveu aquele célebre ensaio sobre o crescimento da população, que afirma que a população cresce muito mais rápido que a produção de alimentos.

E assim vai: houve vigários que eram grandes botânicos, cientistas, inventores (um deles é o pai do submarino), matemáticos.

Confesso que achei intrigante os guias religiosos dos ingleses não usarem seu tempo com questões mais espirituais. Meu espanto à parte, a vida desses senhores me faz me perguntar o que faríamos nós – eu e você, leitor – com uma vida como a deles. Tempo livre é um sonho de quase todo mundo. Um rei francês disse que Paris valia o esforço de assistir a uma missa. A maioria de nós concordaria que o ócio bem vale o "sacrifício" dos vigários ingleses, que celebravam um culto dominical.

Acho até que celebrar o culto e um ou outro casamento ou batizado, por pouco trabalho que fosse, ajudava os vigários a aproveitar melhor o tempo livre; 100% de liberdade deixa as pessoas confusas. Esses compromissos deviam ajudar a marcar o tempo e impedir que eles vivessem completamente no mundo da lua ou fossem vistos como lunáticos. Aliás, um problema considerável em não trabalhar dentro de uma sociedade como a nossa, é lidar com a expectativa alheia.

Reunidos em sociedades, nos tornamos incrivelmente conservadores e sem imaginação e temos dificuldade para aceitar quem pode fazer seus próprios horários ou gastar horas de seu dia estudando algo que lhe interessa, como faziam os vigários curiosos da Inglaterra. Outra dificuldade é o nosso condicionamento em nos mantermos ocupados com coisas que cheirem a trabalho. Diz o ditado que o trabalho dignifica o homem. Na nossa sociedade é muito mais que isso: o trabalho define o homem. Por isso o ócio não é coisa tão fácil de levar.

Um tal Robert Marsham, bisavô do vigário que construiu a casa onde Bryson mora, deixou um trabalho (ou seria um passatempo?) interessante. Rico proprietário de terras (outra categoria tradicional de não trabalhadores na In­­glaterra), o senhor Marsham de­­senvolveu o hábito de, ao fim do inverno, registrar o aparecimento das flores, dos brotos, dos frutos, e a chegada de algumas aves migratórias. Era o que ele chamava de "indicações de primavera". Começou a fazer isso em 1736. Filhos e netos que herdaram as terras mantiveram os registros até 1958. Ou seja, durante 222 anos os Marsham observaram as indicações de primavera. Cientistas que usaram essas informações recentemente puderam dizer em que anos o inverno foi mais longo ou mais curto na Inglaterra. E que entre 1850 e as últimas anotações, de 1950, esteve em curso um processo de aquecimento do clima. O que Marsham fez é hoje um ramo da ecologia chamado fenologia.

Está aí algo que a vida muito ocupada tira de nós: a possibilidade de observar as mudanças a nossa volta, principalmente as da natureza, que são as primeiras que escanteamos quando estamos ocupados. Só notamos a chuva, o frio e o calor. O resto vem e vai e nem registramos. Aliás, algumas coisas só vão: as crianças que crescem, os adultos que envelhecem, a cidade que muda. Será que se observássemos com mais atenção essas "indicações de primavera" teríamos a sensação de aproveitar melhor o tempo fugidio? Estaríamos vivendo melhor a vida, que é assustadoramente passageira? Não sei. Para mim, admito, esta é uma grande questão. Suspeito que, se estivéssemos o tempo todo mais presentes, menos distraídos por questões práticas, pelo menos viveríamos mais intensamente o momento atual, que é o único que temos de fato.

Deixo com você a suspeita e a dúvida, leitor.

Feliz ano-novo.

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