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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Há quem suspeite que invento vizinhos para ter assunto para estas crônicas. Quem dera. Criar um personagem exige talento e esforço. Ele pode estar bem inventadinho, coerente, com um passado e um presente, uma boa história, mas quando falar dele terei aquela sensação de falsidade. Se nem o autor acredita no personagem, ninguém vai acreditar. Um pouco de verdade tem de haver para a história ficar em pé. O homem nu do Fernando Sabino, o Ivan Ilitch de Tolstoi, a Gabriela de Jorge Amado, alguma coisa de real eles tinham.

Logo depois que o amigo, polidamente, insinuou que eu invento vizinhos, um simpático morador da minha rua me deu de bandeja uma daquelas conversas inverossímeis em que é especialista. Ao celular, caminhando no seu terreno, ele explicava para alguém: “Não deu para te devolver o dinheiro porque não estou aqui em Curitiba”. Ao perceber a gafe, se corrigiu: “Eu não estou aí em Curitiba”. E continuou, mentindo desastrosamente: “Amanhã eu venho pra Curitiba e aí te pago”.

O homem nu do Fernando Sabino, o Ivan Ilitch de Tolstoi, a Gabriela de Jorge Amado, alguma coisa de real eles tinham

Foi por meio deste vizinho que conheci o seo Geraldo. Por meses, talvez anos, seo Geraldo e eu fomos vizinhos sem que eu soubesse que naquele barracão onde funcionava uma fabriqueta também morava alguém. Pensava que ele só trabalhava ali. É verdade que toda tarde de sábado, quando o barulho das máquinas parava, ele dava sinal de vida tocando seus CDs. Coisa fina vinha do lado de lá. Podia começar com “Tá legal, eu aceito o argumento...” e terminar com Sinatra pedindo para ver “como é a primavera em Júpiter ou Marte”. Trocávamos algumas palavras, cada um do seu lado do muro. Suponho que, para ser gentil, ele me contou que ouvia a algazarra das crianças e que meu filho era sempre o líder. Não era, mas aceitei o comentário como um sinal de boa vontade e retribuí dizendo que mesmo o menininho, quando não estava “liderando” a gurizada, gostava da música que ele punha para tocar. Por causa disso, nos fins de semana seguintes ele passou a gritar: “Tiago, o que você quer ouvir?” Tiago não sabia o que dizer e eu cochichava no ouvido dele: “Pede Roberto Carlos”. Qualquer outro nome iria parecer falso demais na boca de um menino de 6 anos. A vozinha masculina gritava “Roberto Carlos” e eu imaginava a satisfação do homem magrinho enquanto mexia nos CDs. Então se ouvia: “Meu Cadillac, bi bi, quero consertar meu Cadillac, bi bidu bi bidu”. Nós aplaudíamos, entusiasmados. Aquilo era melhor que uma caixinha de música.

A brincadeira durou alguns meses. Uma noite, notei a luz em uma janela do galpão e, pela primeira vez, me passou pela cabeça que seo Geraldo morava lá. Confirmei a descoberta de forma estranha. Dias depois, fui avisada de que ele tinha morrido naquele espaço industrial que à noite transformava em seu lar. Fui falar com o vizinho (aquele que faz o milagre de andar por aqui mesmo quando está em outra cidade), que me contou mais detalhes. Seo Geraldo, aposentado e divorciado, morava no galpão porque não gostava de ficar sozinho e tampouco queria morar com os filhos. Seu passatempo era fazer gaiolas (ganhei uma de recordação, que veio com um canarinho amarelo) e colares de continhas que levava a um terreiro que frequentava. Também frequentava um salão de baile, aonde ia de terno branco e dirigindo um Fusca também branco. Devia fazer sucesso na pista de dança, cantarolando Roberto Carlos no ouvido das parceiras. Assim levava a vida. Era um personagem tão perfeito que não daria para inventar.

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