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Disseram-me que em Milão as quadras escondem quintais que foram ficando escondidinhos enquanto a cidade crescia. Contaram-me isso enquanto olhávamos, pela janela de um prédio, o quintal do vizinho. Somos todos voyeurs quando se trata de quintal. Não é um pecado grave. Pior seria não notar aquele espaço escondido nos fundos da casa, aquele território da intimidade onde só entra quem o dono quer e não há pompa, não há perigos.

Dos quintais de Milão não sei nada. Com os brasileiros tenho alguma familiaridade. Passei muito tempo na janela dos apartamentos onde morei, sondando o que acontecia lá embaixo. Pobres vizinhos de edifícios! São obrigados a conviver com a curiosidade alheia e com a sombra dos prédios sobre suas ameixeiras (ou nespereiras, para ser mais correta), sobre sua graminha mirrada, seus arbustos de maria-sem-vergonha. Quando criança, no interior, o quintal era meu reino. Vivia distraída, criando histórias e amigos imaginários enquanto circulava entre a horta de meu pai, a edícula onde minha mãe lavava roupa e outros cantinhos que serviam de esconderijo para as crianças.

Nas grandes cidades, os quintais estão em extinção. Cada casa que é demolida e dá lugar a um prédio leva consigo um quintal. Junto com o quintal se vai aquela área de respiro para a cidade, vai embora a amoreira silvestre com seus raminhos espinhentos, a roseira que alguém plantou e que cresceu demais, o pé de araçá ou de butiá, que vão acabar entrando em extinção também. Vão-se os pássaros.

Vão-se as músicas e poemas que falam de quintais. São muitos. Só o Milton Nascimento tem três canções, talvez outras que eu desconheça ("Maria-fumaça não canta mais /Para moças, flores, janelas e quintais"). Vinicius de Moraes escreveu uma carta provocadora a certo Mr. Buster, que não entendia como o poeta preferia voltar ao Brasil podendo ficar na Califórnia ("O senhor sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?").

O sumiço dos quintais merecia teses e estudos, dissertações e ensaios. Seremos outros, sem quintais.

Anos atrás fui cobrir, como repórter, um assalto a banco com reféns. Durante todo o dia, um grupo de elite da polícia cercou a agência na avenida principal de uma cidade do interior. A certa altura, pedi para usar o banheiro de uma casa, onde a dona preparava o almoço. Da porta da cozinha, fiquei de olho na movimentação dos policiais que estavam usando o quintal como base para vigiar a agência tomada pelos assaltantes. Homens de coturnos e roupas pretas, rostos cobertos por capuz, armamento pesado nas mãos, estavam a postos junto ao muro. Para meu espanto, a dona de casa me avisou que ia lá no quintal buscar tempero verde. Aproximou-se dos policiais (que pisoteavam sua cebolinha) e arrancou, sem pressa, a salsinha que faltava para o ensopado. Os homens ali, prontos para atacar os criminosos, e ela colhendo salsinha. Ela estava no seu quintal e dentro dele se esquecia dos perigos do mundo.

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