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Em sua nova obra, Mario Sabino empresta seu próprio nome ao personagem central | Divulgação
Em sua nova obra, Mario Sabino empresta seu próprio nome ao personagem central| Foto: Divulgação

Assim como Brás Cubas, o personagem fundador da literatura cínica de Machado de Assis, o narrador de O Vício do Amor (Record, 2011), de Mario Sabino, é alguém fora do mundo, e que pode, portanto, dizer o que bem quer sobre as pessoas ao seu redor. Se Brás Cubas teve que deixar, em tese, o mundo físico para rir da pretensão dos de sua classe, outra é a forma de se retirar do narrador deste romance que não deixa nenhuma reputação a salvo.

Um mecanismo narrativo é central nesta obra – a mobilidade identitária do narrador. Ele se apresenta como Marco Levi – um autor judeu –, e cria uma versão de sua vida. Para, logo depois, confessar com a maior desfaçatez, macunaimicamente: "Eu disse que me chamava Marco Levi, mas é mentira" (p.53). Dá então o novo nome: Ranuccio Tomassini, construindo outra história para este indivíduo. E aí vem nova rasteira, pois ele em seguida zomba do leitor: como pôde acreditar em personagem com nome tão ridículo? E confessa se chamar Mario Sabino, o que é mais um disfarce, dos muitos que conduzirão a narrativa de revelação em revelação.

Em um processo contínuo de depreciação de tudo, e principalmente de autodepreciação, Mario Sabino, o autor ficcional, exerce um poder destruidor sobre as miragens humanas. Relações familiares, amizades, arte, literatura, sexo, amor, trabalho, principalmente trabalho, tudo é visto de uma forma despudoramente crítica: "trabalho é felação contínua e monótona" (p. 54). Este talvez seja o livro mais violento da literatura brasileira contemporânea, pois o narrador não respeita nenhuma ilusão. Devassa a subserviência interesseira dos serviçais, mas também desmascara os patrões, por conta da avidez. Ele não se reconhece em nenhum dos lados, confessando que "é fácil virar comunista quando se ouve um grande empresário ou um banqueiro discorrendo sobre o único assunto que os interessa: produtividade e lucro" (p.70). A aversão ao trabalho é o eixo desta trajetória.

Abandonado pelo pai, criado por uma mãe indiferente, o personagem se faz jornalista e conhece o lado mais sórdido do ser humano. Nesta fase, o trabalho é uma extensão das humilhações sofridas na infância e na juventude, o que o leva a uma doença de fundo nervoso. Se a orfandade minou a sua personalidade, o trabalho tratou de tentar destruí-la. Do começo ao fim, a presença de discussões e sessões psicanalíticas revela um esforço muito grande deste narrador para se reconstruir.

Ele só sobrevive porque herda dinheiro, muito dinheiro, e pode fazer sua retirada do mundo produtivo. Do ponto de vista simbólico, esta mudança se efetiva quando ele transforma a encomenda de um artigo de US$ 300 (sobre trabalho) em um romance, espaço ficcional em que pode ser quem ele bem quer, ou não ser nada.

Assim, esse Brás Cubas atual vai para Roma (resumo da civilização ocidental), espaço que representa o outro mundo – o da arte e da cultura. Lá, livre das obrigações, conhece as raízes mais obscuras de sua história pessoal e coletiva, participando delas sem sentimentalismos. Do começo ao fim, ele é um solitário, alguém que se une às mulheres mas que não as ama, assim como não ama nada, pois identifica no amor um vício, que poderá desestabilizar ainda mais a sua personalidade. Ele só tem consciência disso depois de seu caso com Renata, que "era inume à droga do amor" (p.253).

Numa linguagem feroz, compulsando grandes textos e comentando obras de arte, este narrador que escreve o romance que estamos lendo não se contenta em rir das idealizações, ele as aponta nos outros como uma forma de neutralizá-las, terminando na mais completa insegurança quanto à existência. A ficção como um além da vida.

Serviço

O Vício do Amor, de Mario Sabino. Record, 271 págs., R$ 37,90. Romance.

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