• Carregando...

Entrou na loja com uma altivez inimaginável em outro lugar. Talvez em um brechó, lugar onde ele nunca fora, pudesse ter a mesma atitude. A coluna ereta, olho nos olhos das pessoas, movimentos de quem avalia tudo. Havia uma continuidade entre a loja de livros usados – com aqueles milhares de volumes sujos, as encadernações puídas, o cheiro de poeira e mofo – e ele. Pertenciam à mesma parcela rejeitada do mundo. Além de velho, com o cheiro que a velhice deixa em nossa boca, em nossa pele, ele só usava roupas de outras pessoas. E se recusava a lavá-las com freqüência, com medo de que estragassem. Por isso ficou encantado ao descobrir um sebo na avenida chique, que ele sempre cruzava sem se deter em nada. E descobria agora aquela porta destoando do resto. Uma verdadeira caverna. Escura, em formato de túnel, com móveis antigos e muitos livros amarelados pelo tempo. Deveria ser bom passar uns momentos entre eles.

Foi por isso que entrou. Havia apenas o corredor estreito. Súbito estranhou que os outros clientes, e ele então se viu nesta categoria, não se apresentavam tão mal-vestidos. Mas os diferentes eram os outros, ele combinava muito mais com as estantes cheias de brochuras estropiadas. Não se deixou intimidar. Seguiu estudando as prateleiras. Sem saber nem como ler os nomes dos autores estrangeiros.

Num lance de ousadia, tirou da estante um livro. Tinha gostado do formato. Viu o número de páginas. Quase 700. Haveria gente capaz de ler um livro pançudo assim? Ele riu da palavra que sua cabeça arranjara. Pançudo. Era uma palavra bonita. E sentiu saudades do tempo em que estudara numa escola rural no interior. Fazia mais de 50 anos. Naquela época, ele adorava ver as palavras se formarem na cartilha. Era como um jogo de dominó. Juntava umas letras com outras e podiam sair as coisas mais diferentes. Tinha parado de estudar no segundo ano primário. Seus olhos súbito se umedeceram.

– O senhor deseja alguma coisa? – o jovem que cuida do caixa na entrada da loja tinha saído de lá para ajudá-lo.

– Um livro.

– É o que a gente mais tem aqui – e rapaz sorriu de forma amigável.

– Um livro para ler.

– Devo ter alguns que se prestam a isso.

– Não quero um livro para guardar, sabe?

– Acho que entendi o que o senhor busca.

Meio maltrapilho, a roupa fedendo a suor, a barba sem fazer, os cabelos embaraçados de poeira, as mãos de trabalhador braçal, e estava sendo tratado por senhor. Isso o comoveu ainda mais. Lembrou de novo do tempo da escola. A professora disse para que continuasse estudando, o conhecimento ia fazer com que as pessoas o respeitassem. Ele achou que aquilo era mentira, ninguém ia respeitar pobre em lugar nenhum. Pobre é sempre pobre. Mesmo quando não fede como ele. Mesmo quando usa dentadura – os dentes dele se estragaram na juventude. E agora descobre que a professora tinha razão; mal entrou numa loja de livros e já foi chamado de senhor.

– Só para eu pode ajudar, quanto o senhor pretende gastar?

Ele contou mentalmente o dinheiro que tinha no bolso. Resolveu fazer uma pequena loucura, economizaria no cigarro, e revelou o valor de sua aposta.

– Cinco reais.

– Tenho bons livros por este preço.

O jovem foi até uma estante e, sem olhar muito, retirou um volume.

O velho teve a primeira decepção. Era um livro fino. A capa estava rasgada num canto. Ele recebeu aquilo nas mãos como se fosse um rato. Com asco. Não, não. Não era isso que procurava. Queria algo mais... mais... Ele não sabia bem o que queria. Mas resolveu falar assim mesmo.

– Eu queria algo mais... sábio.

– Em que sentido?

Ai, meu Deus, as palavras eram sim bonitas, mas traziam tantas complicações. Ele tinha que responder algo.

– Sábio no sentido de sabedoria.

– Até aí entendi. Mas que tipo de sabedoria?

Melhor falar claramente.

– Um livro grosso. Que tenha mais palavras.

– Ah, isso é fácil.

O rapaz andou uns passos e foi até uma estante com livros de capa dura. Ficavam ali os clássicos. Eram livros mais caros, também. Mas talvez encontrasse algum adequado aos desejos daquele cliente estranho. No fundo, queria que o maltrapilho fosse embora quanto antes. O livro mais barato que achou naquela seção custava 15 reais. Mesmo assim, passou o volume para o comprador.

Como todo comprador, ele avaliou o objeto. A capa estava boa, de um produto que imitava couro. As folhas do miolo tinham amarelado, pareciam papel-jornal. E as letras eram miúdas. Mas não reclamaria disso. O rapaz poderia achar que ele estava depreciando o que não lhe pertencia.

– Você não tem algum com desenho na capa?

O vendedor riu abertamente. O velho estava zoando dele. Tomou o livro da mão do cliente e o guardou no mesmo lugar. Moveu-se uns passos e pegou um volume mais grosso, mas com uma capa vermelha, plastificada, revelando uma bela imagem rural.

– Era exatamente assim que eu queria.

– Vamos até o caixa.

E seguiram juntos.

O velho retirou do bolso notas de um real amassadas e sujas. Contou cinco delas. O rapaz ficou com remorso. O livro custava vinte reais, estava entregando por cinco. Mas cinco daquele homem valiam talvez cem. Então resolveu fazer mais um desconto. O valor era uma seqüência de ícones na última página. Ele mostrou os desenhos, vários deles.

– Estou vendo agora que este está em promoção. Custa só três reais – e devolveu duas das notas que recebera.

O velho ficou alegre. Fizera uma boa compra.

E enquanto o outro lhe entregava a sacola com o livro, disse:

– Sabe, quando eu era criança, tive um livro de capa vermelha – mentiu.

O rapaz se despediu dele um tanto constrangido. E o velho saiu para a rua com a sacola na mão. Na esquina, esperando o sinal abrir, pegou o livro e soletrou com dificuldade o título. De fato, havia muitas palavras bonitas no mundo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]