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Tenho dito com certa frequência, e para a revolta de alguns, que pátria é para mim o lugar onde estão os meus livros. Eu poderia viver em qualquer país desde que levasse minha coleção de literatura, uma biblioteca composta quase que totalmente por títulos em português. Enquanto outros perdem tempo e energia para aprender línguas estrangeiras, vou lendo os principais autores em tradução, tornando-os meus conterrâneos.

Como tenho trabalhado bastante e feito muitas viagens, fico sonhando com finais de semana e feriados, gastos invariavelmente em casa. Melhor dizendo, na biblioteca que fiz construir no fundo do quintal. Aqui estão meus parentes espirituais, que fui trazendo de regiões e tempos remotos. Pela internet, compro hoje no mínimo um livro por dia. Não consigo ler tudo, mas me sinto pacificado com a presença deles, pois sei que quando tiver tempo poderei puxar o volume da prateleira e passar horas de convívio com autores e personagens nos quais me reconheço.

A biblioteca ainda não está totalmente terminada. Não sou de mandar construir ou comprar móveis que preencham os cômodos de uma vez. Uma casa é uma soma de pequenas escolhas que vamos fazendo ao acaso. Deve ser decorada com vagar. Quando encontramos algo que nos agrada, compramos e ocupamos aquele espaço que estava esperando por um móvel, por um quadro, por um adorno qualquer. Decorar é acumular vivências.

As aquisições novas para a biblioteca são móveis que pertencem à mesma família. Comprei um sofá de três lugares para colocar em uma das salas, onde ficam os livros escritos originalmente em língua portuguesa. É um sofá grande, de couro ecológico, marrom escuro. Depois que instalei o móvel, vi como ele era inadequado. Não recebo ninguém na biblioteca, e ando cada vez mais solitário. Então para que um sofá de três lugares? Na outra sala, onde estão os livros traduzidos, já tenho minha poltrona de leitura, e ela é mais do que suficiente para mim e meus fantasmas. Que obscuro desígnio me levou a comprar este sofá, então? Não sei, e ele passa os dias praticamente sem uso. Em uns poucos momentos, levo um livro para lá, ou me sento com minha mulher ou um de meus filhos para acertar detalhes da vida cotidiana. O importante para mim é que o sofá esteja disponível quando eu precisar dele.

Logo depois desta aquisição, e de várias visitas a lojas, comprei um banco e uma mesa de centro construídos com madeira de demolição. As tábuas ressecadas, com restos de tinta azul e verde, dão o toque roceiro a estes móveis que coloquei na varanda da biblioteca. É ali, nas manhãs e nos finais de tarde, que me sento para ler.

Como o banco é duro, minha mulher resolveu mandar fazer almofadas. Achou uns tecidos floridos que tínhamos comprado em Ouro Preto, anos atrás, e levou a uma tapeçaria. O resultado não foi muito satisfatório. As almofadas ficaram pequenas – era pouco o tecido. Por isso, acabaram no sofá marrom. É assim que a biblioteca vai sendo decorada, aproveitando também os erros de projeto. Falta fazer muita coisa ainda. Mas não temos pressa nenhuma.

No chão, em frente à minha mesa de computador, há um painel de cerâmica que comprei em Porto Belo no início de janeiro. Ele aguarda que eu o pendure numa das paredes. Ainda não me decidi onde. A cerâmica é de Edmundo Campos, e mostra uma árvore seca com frutos amarelos. Sob ela, passarinhos e grafismos. Raízes vermelhas se aprofundam em um solo cinza. É o segundo trabalho que compramos deste artista catarinense. O outro está pendurado na saleta da frente, de onde olhamos a rua – cada vez mais movimentada, mas que nos feriados fica deserta, igual a quando nos mudamos para este bairro. Não viajamos nos feriados para não perder este sossego que as muitas construções nos tiraram.

Enquanto a árvore no painel de Edmundo Campos continua dando frutos intemporais, a romãzeira que plantei no quintal vai maturando suas lanternas disformes. As romãs este ano ficaram pequenas; teremos uma frustração de safra. Não sei se foi a seca ou alguma praga, mas elas logo assumiram uma cor de ferrugem. Quando passo pelas romãs, lembro-me de que a pele de meu rosto está cada ano mais parecida com elas.

Provavelmente não aproveitaremos essas frutas. Embora elas estejam já quase passando do ponto, não tivemos vontade de romper sua casca envelhecida para buscar o êxtase das sementes rubras. Na semana passada, ainda vi umas flores extemporâneas em seus galhos, o que demonstra que talvez a árvore tenha endoidecido, lançando flores quando devia estar derrubando suas folhas outonais.

Tenho ficado pouco no quintal, pois há sempre muitas leituras para fazer na biblioteca. Tranco a porta, ligo o ar-condicionado e me dedico aos livros, ao computador e aos cadernos. Contemplo pouco os amanheceres e os entardeceres, pois, mesmo quando recorro ao banco da varanda, estou sempre com os olhos afundados em algum material encadernado. Quando trabalho no computador, olho a árvore no painel de cerâmica, com seus frutos eternos. Não, não preciso da paisagem precária de meu jardim. Há outra maior aqui dentro.

A biblioteca não tem janelas, apenas uma camada de vidros no alto da parede. Ficam exatamente abaixo de uma marquise externa, feita para diminuir a incidência de luz. Mesmo assim, perto das cinco horas da tarde, os raios solares me atingem os olhos. Para diminuir o seu perigo, mandei colocar insufilme nas vidraças, que ficaram levemente espelhadas.

É muito comum, por isso, uma pombinha se confundir e bater nas janelas, que não têm mais de 30 centímetros de altura. Faz um estrondo feio que me assusta.

Mas ultimamente tenho tido um outro tipo de visita, menos intempestiva. Os sabiás ficam na soleira das janelinhas, bicando o vidro e batendo asas, num esforço para entrar. Não estão iludidos com o reflexo do jardim, apenas querem, tal como eu, a paz da vida na gaiola.

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