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Há coletâneas poéticas cuja leitura não se faz pelos poemas em si, mas por algo que percorre os textos – uma voz, uma música, um sentimento. É uma forma de ler própria da prosa, em que o leitor quer a próxima página, o que virá logo à frente. Pertence a este grupo o volume Sísifo Desce a Montanha (Rocco, 2011), de Affonso Romano de Sant’Anna. Poeta maduro, com obra extensa, ele escreve poemas num idioma aberto, promovendo uma contração dos mecanismos literários.

Seus últimos títulos já traziam uma serenidade (um manso desespero, ele vai dizer a certa altura) ao tratar do fim, serenidade intensificada agora neste volume que, desde o título, se fixa nas trajetórias decrescentes. Este sentimento é a marca da coletânea em que o poeta se confronta com a morte – mais de um poema fala no crematório –, desejando-a e a repelindo, numa tensão permanente.

Viajando por vários países, por lugares carregados de História e por outros que vivem ainda à sombra dos mitos, o poeta reconhece a fragilidade da vida humana e ao mesmo tempo a sua força. Esses deslocamentos servem de espelho cego, que não mostram um eu, mas a ausência dele em espaços de alteridade.

Assim, o eu se torna menor nos poemas, desarmando a ilusão da originalidade. Não é a linguagem de exceção, a condensação de sentimentos, a inovação ou o trabalho formal que interessam a Affonso Romano de Sant’Anna. Ele está em busca de uma poesia que seja linguagem discretamente meditativa, colada à vida interior das pessoas, uma linguagem própria para falar e para pensar, que adquira uma condição vivente:

"o frágil sopro do monge que imóvel liga-se ao universo e é só respiração."

A "poética da respiração" (título deste poema) perpassa todas as páginas do livro, mesmo quando ele assume um tom mais indignado (como em "Parem de Jogar Cadáveres na Minha Porta"), momentos esses que servem para preparar o tom brando de outros poemas. Aqui também há uma tensão entre opostos – revolta e resignação. O ritmo preponderante é, portanto, suave, porque este eu se sabe a cada hora mais às vésperas do fim.

Formalmente, os poemas se avizinham da crônica – o autor também é cronista –, em uma apropriação de recursos da prosa que garante o caráter transitável da linguagem. Na tradição da lírica moderna, há uma força comunicativa no que poderíamos chamar de poesia realista – mais um realismo de linguagem (próxima à respiração humana) do que temática – na qual é possível inscrever o autor mineiro. Não que ele faça crônica em versos, mas ele amplia as possibilidades da crônica ao transportar esta sensibilidade para o domínio do poema.

Seus poemas são formas de sentir, de pensar, de ver e de criticar a realidade a partir da trajetória de um intelectual que cruzou os 70 anos e que avalia a paisagem pessoal, devastada por tantas perdas, e também a paisagem histórica, e faz da linguagem um registro desses vazios. Dono de ampla erudição, Affonso Romano de Sant’Anna não a usa como força de argumentação, colocando-a em situação de diálogo.

"Tenho colhido a vida dentro e fora dos museus.

Quando o real me oprime volto aos mestres que me redimem.

Quando as obras me exasperam volto à vida, ao jardim às rosas

- que me esperam."

Assim, o deslocamento do poeta pelo mundo, registrado em vários poemas nascidos em viagem, as referências a obras de artista e as leituras são apenas um dos polos de sua poesia, que encontra no outro, na mínima e rica paisagem doméstica, nos afetos da madureza, um contraponto de linguagem que lhe dá a forma.

Serviço:

Sísifo Desce a Montanha, de Affonso Romano de Sant’Anna. Rocco, 136 págs. Poesia.

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