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Camponês na capital

Não era bonita nem nova e passaria despercebida em qualquer lugar não fosse sua feição eqüina. O rosto alongado, os cabelos castanhos caídos nos ombros, como crinas. Na fila do cinema, ele não resistiu e tocou nos fios grossos. Ela não se incomodou.

Assistiram ao filme juntos, um filme em que apareciam amplas campinas. Ele achou que ela fosse sair cavalgando a qualquer momento. Mas ela não se atreveu a fazer nada ali. E ficou comendo pipoca, triturando ruidosamente os piruás.

Saíram do cinema direto para o apartamento dele. Antes do primeiro beijo, pediu para que ela abrisse a boca e inspecionou os dentes. Fortes e grandes. E beijou aquela boca que não escondia a gengiva dentuça, sofrendo arrepios com a fragrância de capim e milho, como no tempo da infância, quando ele tratava das éguas no estábulo da fazenda.

Quando ela se abaixou para desamarrar o cadarço do tênis, vergando a coluna e ficando quase de quatro, ele não resistiu e pulou sobre aquelas ancas. Assustada, ela saiu cavalgando pelo apartamento.

Ele agora só anda com roupa de caubói (chapéu, cinta com fivela de alpaca e botas) e fede suor animal e estrume. Todas as tardes, os vizinhos ouvem o barulho de cavalgadas e sentem odor de pasto no sexto andar. No último fim de semana, ele apareceu com um olho roxo, explicando feliz aos amigos que levou um coice no estábulo.

Sai sempre do prédio ao lado da mulher, um talo de feno entre os dentes. E não faz mais planos de voltar ao interior.

Amor, velho amor

As batidas na porta eram fortes. Ele foi atender, imaginando a visita de algum vizinho de prédio.

Abriu a porta para repreender o outro pela agressividade, vendo uma vaca com a pata erguida para bater novamente.

– Queira me desculpar a insistência – ela disse.

– O que a senhora deseja?

– O senhor não está precisando de doméstica?

Por um acaso, ele estava querendo contratar uma empregada. E as mulheres vindas do campo são sempre mais dedicadas ao serviço.

Pediu para que ela entrasse, acertaram o salário. Ele mostrou os cômodos, disse como gostava da arrumação das coisas, como deveria ser a comida. Depois mostrou o quarto de empregada, mas viu que ela não caberia naquele cubículo.

– A senhora pode dormir no quarto de visitas.

Local que ele passou a freqüentar.

Desde então, seus dias tornaram-se muito agradáveis.

À noite, os dois assistem à novela juntos. Ele apenas se irritava com a eterna ruminação da vaca. Para acompanhá-la, adquiriu, depois de velho, o hábito de mascar chicletes.

Conquistando a verdadeira paz doméstica.

Sobre a piedade humana

Era o último leão na selva, todos os demais haviam sido mortos pelos caçadores. Ele então apareceu diante dos conselheiros do único povoado do país para explicar, humildemente, que com ele morria uma espécie.

Todos se comoveram com a história do sobrevivente. E, como sinal de trégua, ofereceram-lhe as mulheres mais jovens da cidade, que cruzasse com elas.

Em pouco tempo, vários leões puros nasceram e como filhos foram criados. Quando se tornaram adultos, jubas ao vento, dentes afiados e desejo de caça, mataram todos os humanos.

Sobrou apenas um rapaz, que tinha nascido do mesmo ventre que gerara um dos leões. Em nome deste parentesco, ele pediu para ser poupado. Era o último de uma espécie, explicou ao Conselho dos Leões Rebeldes, criado para administrar o país. Não queria nada que os homens não tivessem dado ao patriarca leonino – uma fêmea para se acasalar. O pedido foi satisfeito e o rapaz acabou entregue à mais bela leoa, que vinha a ser sua prima.

Na noite do primeiro encontro, foi devorado.

O amor pelas moscas

Era negra como a noite, mas o pai, sem saber o sentido das palavras, deu-lhe o nome de Maria das Neves.

Maria foi criada pelos cães que viviam no quintal, o pai catava lixo e a mãe, essa fugira logo depois do parto. Suja de urina, remela e outros dejetos, a menina nunca foi à escola. Os vizinhos lhe davam um prato de comida e, quando ela ficou maiorzinha, pequenos trabalhos.

Quase não falava e era vista sob a proteção de um séquito de mosquitos. Ninguém chegava muito perto.

Quando caiu o gato de um vizinho na privada, ela fez o resgate. Corpinho miúdo, desceram Maria, amarrada a uma corda, pelo buraco do assoalho da casinha, ela alegre com as moscas que zuniam na escuridão mal-cheirosa. Voltou ainda mais suja do que entrara. Assim que entregou o gato aos donos, que o enrolaram num pano diante da audiência de quase todo o bairro, recebeu como paga umas notas sujas e um apelido:

– Maria das Fezes! Maria das Fezes – as crianças presentes gritaram.

E esse ficou sendo seu nome até a morte do pai. Ela então foi recolhida ao orfanato, onde viveu limpa e triste.

– Por que as moscas não gostam mais de mim? – sempre se pergunta.

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