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rodrigo wolff apolloni

A procissão de São Benedito

Os poetas românticos, li em algum lugar, foram os primeiros cultores do “olhar estrangeiro”, aquele estado de espírito que permite ao indivíduo mergulhar em uma realidade cultural diferente da sua e dela extrair uma experiência estética e psíquica digna de registro. Pois foi como um poeta romântico – curitibano às voltas com uma brasilidade antiga – que me senti há alguns dias, quando, em viagem ao Espírito Santo, tive a oportunidade de me unir a uma procissão em homenagem a São Benedito.

A cerimônia acontece no Centro Velho de Vitória, região de ruas estreitas e ladeiras de pedra que testam a fé e as pernas dos fiéis que frequentam as igrejas, capelas e conventos semeados ali nos séculos 16 e 17. Pois eu havia lido alguma coisa no jornal e, para sair um pouco da rede – onde havia permanecido por muito tempo, hipnotizado pelo sol –, calcei os chinelos e fui até lá com a patroa.

Cumprimentos, sorrisos e abraços eram distribuídos com o mesmo afeto pelo qual o santo negro ficou conhecido no sul da Itália há 500 anos

Cheguei meio de lado, um pouco desconfiado, e encontrei uma celebração realmente interessante. Pequena, mas muito colorida e altamente fogueteira. Com direito a andor, estandarte e fiéis vestidos com os trajes da Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos, quase tão velha no mundo quanto o próprio santo. E uma banda marcial que tocava hinos católicos em ritmos caribenhos.

Aqui e ali, pelo trajeto entre a colonialíssima igreja de Nossa Senhora do Rosário e a sisuda catedral neogótica do século 20, o cortejo era recebido por devotos da umbanda e sob os aplausos da vizinhança. Cumprimentos, sorrisos e abraços distribuídos assim, com o mesmo afeto pelo qual o santo negro ficou conhecido no sul da Itália há 500 anos. Com a música e a irregularidade do calçamento, aliás, o andor vinha meio dançando, o que conferia um caráter ainda mais fantástico à cerimônia. Engrossando o cortejo, velhotas marchando como soldados da fé e turistas suarentos batendo palmas (e, no meu caso, deixando algumas lágrimas pelo caminho por causa da beleza do momento).

Ao chegar à praça da catedral, a bulha aumentou, para se aquietar assim que a imagem adentrou o edifício, onde a missa só estava à espera do homenageado. Fim do foguetório. Do lado de fora, a retreta atacou os últimos acordes de “abençoa, Senhor, as famílias” em ritmo de ska e se dispersou, devolvendo o Centro Velho de Vitória ao silêncio de tarde de domingo.

E eu voltei para uma rede que balançava devagarinho, onde, estrangeiro, fiquei a perceber, em cada elemento da experiência – dos homens pretos às beatas, da umbanda à catedral neogótica –, um pouco (e um muito) do que também sou. Valeu muito a pena.

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