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Matias acende uma vela para a mãe: no cimento fresco, a última homenagem | Daniel Castelano/Gazeta do Povo
Matias acende uma vela para a mãe: no cimento fresco, a última homenagem| Foto: Daniel Castelano/Gazeta do Povo

Lula libera valor maior de FGTS

Brasília - Um dia antes de voltar a percorrer as áreas atingidas pelas enchentes em Santa Catarina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou ontem decreto aumentando o valor do saque da conta vinculada ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para todas as pessoas que enfrentaram problemas de calamidade. O presidente sobrevoa várias cidades do Vale do Itajaí hoje, a partir das 14 horas.

A promessa de liberar integralmente o FGTS para este tipo de emergência foi feita em 26 de novembro, quando Lula visitou os municípios atingidos pelas enchentes.

O decreto anterior limitava o saque em caso de emergência com calamidades a R$ 2,6 mil. Agora, as pessoas atingidas podem sacar até o valor integral do fundo. Antes, também, os saques, ainda que em casos de calamidade, tinham de ter o intervalo de um ano para ocorrerem novamente. Agora este limite mínimo de tempo também foi abolido. O beneficiado terá até três meses para requisitar a liberação do fundo.

Agência Estado

Ilhota - O corpo de Deonilda Seberino foi posto ontem em um túmulo simples, escavado no barro que tantas tragédias causou no Morro do Baú. O pedaço de terra, coberto apenas por cimento, devolveu enfim a paz para uma família. Não tem enfeites nem luxo, mas tem, escrito à mão, o nome daquela que é, oficialmente, a 124ª vítima das enchentes de Santa Catarina.

O enterro do corpo foi a obsessão do filho de Deonilda nos últimos 19 dias. Matias se recusou a descansar enquanto não desse à sua mãe a homenagem que ela merecia. Enquanto as famílias de Ilhota, o município onde fica o Morro do Baú, reconstruíam suas casas, ele corria atrás de seu único objetivo.

A tragédia da família começou no dia 23 de novembro. Mãe, filho e nora se preparavam para ir dormir. Matias perguntou à mãe que horas eram. O relógio, atrasado, indicava 2h30. Matias e a esposa Priscila foram para o seu quarto, enquanto Deonilda seguia para o dela. Não chegaram a deitar.

O morro deslizou e atingiu a casa. Deonilda estava perto de conquistar o sonho de reformar o telhado e comprar um fogão novo. Não sobreviveu para isso. A casa também não existe mais: veio abaixo num piscar de olhos.

Os três ficaram presos nos destroços. Matias, aos poucos, conseguiu se soltar dos escombros, a custo de dor e esforço. Ele caiu perto da esposa. Ouvindo o choro dela, conseguiu localizá-la e tirar os galhos de árvore que impediam seus movimentos. Ver era difícil. A luz elétrica tinha ido embora dias antes, por causa da chuva.

Deonilda gritou uma vez por socorro. Chorou. Gritou de novo. Para localizá-la, Matias precisava ouvir mais uma vez. O som não veio. Matias e Priscila tinham que sair do local, para sobreviver e para buscar socorro. Estava escuro, mas Matias apostava que sabia o caminho das trilhas de olhos fechados. Perderam-se duas vezes até chegar à casa do vizinho.

Na manhã do dia seguinte, Matias tantava resgatar a mãe. Viu só a mão: sentiu que estava gelada e não conseguiu puxá-la porque o corpo estava preso nos galhos de árvores. "Desde aquele momento, não perdi a esperança de resgatar o corpo da minha mãe", diz Matias. Antes que conseguisse cumprir o que prometera para si mesmo, porém, foi obrigado a voltar para a casa do vizinho para ser resgatado de helicóptero. As autoridades estavam evacuando o local devido ao risco de novos deslizamentos.

Chegando ao abrigo, Matias não sossegou. Tinha que ir buscar o corpo da mãe. Ele sabia onde estava o corpo e ligava para as equipes de socorro. "Vão lá. O corpo está perto da casa", implorava ele às equipes de resgate. Três dias se passaram e Matias recebeu uma ligação: "Falaram que sua mãe está no hospital", dizia o cunhado do outro lado da linha.

Aos prantos, no Hospital Santa Isabel, em Blumenau, o jovem magro, de poucas palavras, e que parece se esconder debaixo de um boné, perguntaram pela senhora Deonilda. A atendente respondeu que não tinha ninguém com esse nome. Eles insistiam: "procura agora pela idade, talvez tenham dado outro nome."

Matias sabia que a sua mãe estava morta, mas mesmo assim seguiu para o Hospital Santo Antônio. Sem nenhuma resposta, foi para o Instituto Médico-Legal, Capela Mortuária e Polícia Civil atrás de ajuda. Passou por Ilhota, Gaspar e Blumenau.

Com os nervos à flor da pele, Matias prosseguia sua busca. A esposa pedia para pôr no jornal uma foto de Deonilda que, após uma semana, ainda não tinha sido encontrada. "Eu tinha esperança de encontrar. Nunca desisti", diz Matias. Na esperança de encontrá-la, ele arriscaria a própria vida para resgatar o corpo da mãe e sua dignidade. "Eu não ia desistir porque ela não merecia ficar lá e ser enterrada como cachorro."

Na última quarta-feira, Matias chamou o cunhado e decidiu que iria subir a região mais perigosa do Morro do Baú. Os dois foram de moto até onde o acesso permitia. Depois, seguiram quatro horas a pé no meio do mato para ir ao local onde estava a casa. Não tinham corda, nem facão, nem roupa especial. Nenhuma equipe de resgate sabia da decisão dos dois.

Burlando as barreiras policiais, chegaram até o local onde o filho dizia que o corpo de Deonilda estava. O cunhado se adiantou e encontrou o corpo, semi-enterrado. "Não queria mostrar nada para o Matias. Era muito triste". Não teve jeito. Matias foi lá e viu a cena.

Uma aeronave sobrevoava a região. Os dois sinalizaram o local em que o corpo estava com um lençol branco e com uma cruz feita com folhas de bananeira. O corpo foi enviado ao IML de Blumenau. Assina aqui, encaminha aqui, declara aqui. Passada a burocracia, Matias teve a certeza: era o corpo da sua mãe.

Para Matias, a saga de sua família é uma prova do descaso das equipes de resgate. Os policiais negam e dizem que todos os corpos serão encontrados. Até agora, são 126 mortos registrados, mas ainda há 27 desaparecidos.

No sepultamento de Dona Deonilda, realizado ontem no Braço do Baú, a emoção tomou conta dos familiares. Matias se lembrava das últimas palavras que trocou com a mãe. "Mãe, que horas são?", perguntou. "Ela respondeu que eram 2h30 e logo vi que o relógio tinha parado". Matias preferiria que não só o relógio, mas o próprio tempo tivesse parado.

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