No início de junho, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública com o tema "Abordagem e busca pessoal como instrumento de prevenção da violência". O objetivo era debater os riscos e as consequências da recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que tentou endurecer regras para abordagens policiais sob a justificativa de combater o “racismo estrutural”.
Desde o final de abril, quando foi publicada, a decisão reverbera em todas as corporações de polícia militar, que predominantemente exercem as abordagens no dia a dia, como tarefa preventiva à criminalidade, e causa temor nos agentes de segurança quanto a possíveis retaliações judiciais por desempenharem suas funções ordinárias.
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Mais do que isso, a medida gerou preocupações por parte de especialistas devido ao estímulo à criminalidade que a medida pode ocasionar. Para evitar a redução das abordagens policiais, em reunião recente secretários de segurança pública de todos os estados decidiram, de forma unânime, manter a prática e reforçaram sua importância no policiamento preventivo.
A recente audiência pública na Câmara foi uma tentativa encontrada por deputados de debater o tema e encontrar soluções legislativas para evitar os impactos negativos da decisão do STJ. Entre os participantes esteve Ronaldo João Roth, juiz de direito da Justiça Militar de São Paulo. Mestre em Direitos Fundamentais com quase cinco décadas de atuação na segurança pública, o magistrado expôs, em sua fala, que a decisão do STJ é equivocada e, na prática, dá fim ao policiamento preventivo.
Roth disse que a situação é preocupante, uma vez que as atividades de prevenção ao crime, que têm como importantes pilares as abordagens e buscas pessoais, transmitem segurança à população e inibem fortemente a prática de delitos. O juiz enfatizou que as ações preventivas da polícia militar – corporação que foi o principal “alvo” do voto do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso – são legais e não devem ser confundidas com as atividades da polícia investigativa, que é orientada pelo Direito Processual Penal. Para Roth, mesclar as funções das polícias foi o principal erro dos ministros do STJ.
Nesta entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, Ronaldo Roth aponta os equívocos no entendimento do STJ, cita as possíveis consequências da decisão e explica o que deve ocorrer daqui em diante quanto às abordagens policiais.
Na audiência pública, o senhor disse que o STJ errou ao analisar as abordagens policiais, predominantemente exercidas pela polícia militar, sob a ótica do Direito Processual Penal, que orienta as polícias investigativas. Pode esclarecer essa questão?
Ronaldo João Roth: Temos no Brasil um ciclo de polícias que é dividido em polícia preventiva, ou seja, aquela que tem como objetivo evitar o crime, com a polícia nas ruas patrulhando e agindo (o que inclui, obviamente, a realização das abordagens e buscas pessoais), e polícia repressiva, isto é, judiciária ou investigativa, que entra em cena após o cometimento de um crime.
É importante ficar claro, em qualquer discussão sobre segurança pública, que no modelo que o Brasil adota, segundo a Constituição Federal de 1988, mais especificamente no artigo 144, há essa subdivisão. Essa é realidade em todos os estados, com a polícia militar como preventiva e a polícia civil como repressiva. Já no âmbito da União, temos a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizando a atividade de polícia preventiva e a Polícia Federal desempenhando ambas as funções.
Enquanto a atividade preventiva de polícia se faz com base no poder de polícia, baseado no Direito Administrativo, a atividade de polícia investigativa se faz com base no Direito Processual Penal. É por isso que nós não podemos confundir, por exemplo, “atitude suspeita” com “fundada suspeita”. O conceito de “atitude suspeita”, para a polícia preventiva, é o necessário para ela agir parando um veículo, abordando um cidadão e pedindo os documentos. Se a partir dessa atividade for descoberto que o sujeito porta armas ou munições, por exemplo, ele será preso em flagrante delito.
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Então o raciocínio é ao contrário do que decidiu o STJ: o policiamento preventivo é legal e constitucional, e as provas decorrentes dele são legais. É inconcebível que uma decisão judicial ignore essa realidade. E o STJ, por um equívoco, não trouxe essa abordagem, o que gerou uma série de confusões no acórdão.
Destaco que se a Constituição estabelece que a polícia preventiva vai ser desempenhada pela polícia militar, ela está dizendo que a preservação da ordem pública se fará pelos mecanismos legais e lícitos correspondentes ao momento anterior ao crime. E se ela descobrir um crime parando um veículo insufilmado e verificando que ali há uma pessoa sequestrada, ela vai salvar aquela pessoa do crime e vai prender os infratores.
O entendimento do STJ dá margem para que em um caso desse, a abordagem seja considerada ilegal, o crime não exista e o sequestrador saia dando risada. E a outra consequência disso, ao prosperar esse entendimento, é que qualquer atividade da polícia preventiva poderia ser considerada constrangimento ilegal ou abuso de autoridade. Aí haveria ainda a responsabilização do policial como criminoso. É uma inversão de valores completa!
Pelo que o senhor disse, as PMs não precisariam observar o item da “fundada suspeita” do Código de Processo Penal (CPP)?
Ronaldo Roth: Exatamente. A polícia militar, dentro do ciclo de polícia, trabalha fora do CPP. O CPP trata de procedimentos formais em relação à prática do crime, ou seja, só entra em ação após a prática do crime. A PM não trabalha com o CPP na mão.
O que o STJ fez: pegou as buscas pessoais, que são atividade exercida pela PM, e reduziu à disciplina do CPP, que trata de polícia investigativa. Mas o raciocínio é exatamente o oposto: no Brasil, toda lei deve ser subordinada à Constituição Federal. Não posso raciocinar pelo CPP para interpretar a Constituição, e sim o contrário.
O que o STJ tentou foi estabelecer para a polícia preventiva as mesmas formalidades que existem para a polícia investigativa. Mas aí é preciso mudar a Constituição Federal.
Também na sua fala durante a audiência pública, o senhor citou que a consequência de restringir as abordagens seria um caos na segurança pública. Quais os impactos, na prática, caso as polícias acatassem esse entendimento do STJ?
Ronaldo Roth: O caos desse entendimento equivocado é desconsiderar o papel constitucional da PM, que é o eixo principal na segurança pública do Brasil, que trabalha diuturnamente com uma produção gigantesca de atendimentos de ocorrências e socorros, de abordagens policiais, apreensão de armas, prisão de foragidos da Justiça e realização do flagrante delito.
Temos uma situação recente aqui em São Paulo, que é a Operação Sufoco [operação da PM de SP iniciada em maio, que aumentou o patrulhamento no estado e intensificou as abordagens; em um mês, houve 17% de aumento nas prisões por crimes como tráfico de drogas, tráfico internacional de armas de fogo, roubo e receptação, além da apreensão de 21 toneladas de drogas, 240 armas de fogo ilegais e 9,9 mil veículos]. Essa operação vem sendo realizada 24 horas por dia, com a polícia abordando indiscriminadamente todos os motociclistas e entregadores de alimentos por aplicativo.
A polícia tem feito isso não por prazer, mas pelo dever jurídico, agindo no estrito cumprimento do dever legal. Isso porque nos últimos meses o número de roubos e latrocínios praticados por pessoas travestidas de entregadores aumentou muito. Segundo o STJ, toda essa operação envolvendo milhares de policiais diariamente poderia ser considerada ilegal sob a alegação de que ela não obedece ao CPP.
Isso só fomenta a impunidade no Brasil. A situação chegou a esse ponto: ela atinge diretamente o cidadão no dia a dia porque o STJ entendeu que a PM não poderia mais fazer o policiamento preventivo.
Destaco que a questão é complexa e envolve o Brasil todo. Essas restrições podem impactar também nas abordagens da PRF, por exemplo, e da PF, nos aeroportos e portos, porque tudo isso está no âmbito do policiamento preventivo. E o maior prejudicado em tudo isso será o cidadão. É a população que vai sofrer com a ação deletéria de infratores que, aproveitando-se dessa decisão, vão deitar e rolar porque sabem que numa abordagem policial qualquer, caso seja descoberto o crime que estão praticando, poderão sair ilesos.
Essa decisão do STJ não é vinculativa, correto? Ou seja, não há restrição legal para que a PM siga fazendo as abordagens?
Ronaldo Roth: O caso foi julgado num processo concreto envolvendo um réu. Acontece que, por decisão do próprio ministro relator, foram oficiados e comunicados todos os presidentes de Tribunais de Justiça dos estados e de Tribunais Regionais Federais, além dos chefes do Ministério Público estadual e federal.
E aí surge não o efeito vinculante, mas o efeito do precedente. Isso pode impactar na decisão de juízes, quando forem apreciar casos numa audiência de custódia, por exemplo, ou de promotores, que ao se verem diante de um caso semelhante, podem pedir o relaxamento da prisão citando essa decisão do STJ. Ou seja, pode-se valer desse precedente como força para decidir. Por isso esse entendimento é perverso e nocivo para o todo o país.
É claro que as polícias não vão parar de fazer as abordagens. Elas nem poderiam, pois têm que cumprir um mandamento constitucional que está muito acima desse julgamento do STJ. Mas o efeito nocivo e as consequências disso refletirão nos casos concretos. Pode haver uma impunidade geral, com o trabalho da PM no Brasil resultante da atividade preventiva sendo jogado no lixo.
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