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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Parece que alguns leitores vão atrás de livros que comento. É o que me contam em e-mails. Eu mesma faço isso o tempo todo. Tenho uma listinha de títulos que amigos citaram. O Marcelo elogiou Nove Novenas, do Osman Lins – está anotado. A Lorena mencionou Longe da Árvore, do Andrew Salomon – entrou para a listinha, assim como É , do Millôr Fernandes, que o Key recomendou. Sendo assim, me animo a comentar o presente de Natal que meu irmão me deu. Cartas Extraordinárias (Companhia das Letras) é uma reunião de correspondências trocadas entre particulares. Nada de documentos importantes da História. Curiosidades, isso sim, das melhores.

Tem muita coisa boa no livro, mas ninguém bate as crianças em força e graça na forma como se expressam. A falta de malícia faz com que se manifestem de uma forma que um adulto jamais conseguiria copiar.

Grace, 12 anos, escreveu ao candidato à Presidência dos Estados Unidos Abraham Lincoln sugerindo que ele deixasse a barba crescer. "O senhor ficaria muito melhor porque tem o rosto muito magro." Que delícia a inocência presunçosa de Denis Cox, que em 1957 endereçou uma carta "a um grande cientista" da base de lançamento da Real Força Aérea Australiana com sugestões para um foguete que ajudaria a Austrália a entrar na corrida espacial. Desenhou uma nave que se parecia mais com os ônibus espaciais que seriam criados décadas mais tarde. Junto iam orientações a serem seguidas, como usar "motores de Rolls Royce". A cereja no bolo é a frase que resume tudo que o menino não sabia sobre projetos de foguetes e por isso deixava por conta dos cientistas: "Você acrescenta outros detalhes".

Talvez a carta tenha caído nas mãos de cientistas sem humor (mas que se deram ao trabalho de arquivá-la). Só ganhou uma resposta 52 anos mais tarde, vinda de alguém que talvez nem fosse nascido quando Denis imaginou seu foguete. "A meu ver a frase mais interessante da sua carta é 'acrescentem outros detalhes'. Ela deixa claro que o senhor tinha tudo para ser um excelente gestor, capaz de dar liberdade de ação para quem entende do assunto", troçou o cientista, que deve ter se divertido escrevendo uma resposta cinco décadas depois.

Há várias cartas de crianças no livro, todas mágicas ou malucas. Um menino pede ao arquiteto Frank Lloyd Wright um projeto de casa para cachorro. A menina pergunta a Einstein se os cientistas rezam (a resposta do físico foi não, mas acrescentou que "todos os que se dedicam seriamente à ciência acabam se convencendo de que um espírito infinitamente superior ao espírito humano se manifesta nas leis do universo").

Impressionou-me a forca da mensagem que o compositor Samuel Barber escreveu aos 9 anos e deixou sobre um móvel para que sua mãe a encontrasse: "Escrevi isto para lhe contar meu terrível segredo. Não chore quando ler porque não é culpa sua nem minha, ... nasci para ser compositor. ... não me peça para esquecer essa coisa horrível e ir jogar futebol". O menino estava absolutamente certo. A "coisa terrível", ou seja, seu talento e necessidade de criar, fez dele um dos compositores mais respeitados dos Estados Unidos.

Outro conjunto de cartas impressionante é formado por mensagens de pais para filhos. Como não ficar boquiaberta com as palavras do pai que escreve ao filho de 12 anos contando que achava ter feito uma descoberta importante (o DNA). Naquela correspondência de 1953, o cientista Francis Crick inclusive explicou para o menino, de forma simplificada, o que é o DNA. Ele e seus companheiros de pesquisa ganhariam, anos mais tarde, o Nobel pela descoberta.

Ronald Reagan compartilha experiências com o filho recém-casado. F. Scott Fitzgerald aconselha a filha pequena ("Não se preocupe com o passado, não se preocupe com o presente, não se preocupe com alguém passar na sua frente"). John Steinbeck responde ao filho de 14 anos que contou aos pais que estava apaixonado. A carta do garoto deve ter revolvido sentimentos guardados pelo escritor. Percebe-se nas suas palavras um esforço para ser contido ao mesmo tempo em que baixa a guarda diante das paixões que o menino começa a viver ("Essa é a melhor coisa que pode acontecer com qualquer pessoa").

O que me leva à conclusão de que pais e mães deveriam escrever pelo menos uma carta ao filho, em alguma altura da vida. Que experiência forte seria para quem escreve e para quem lê!

Escrever é diferente de falar por colocarmos sempre um filtro nas frases redigidas. O papel não aceita gaguejos nem tem mãos e olhos para complementar o que não é expressado verbalmente. É preciso colocar em palavras a mensagem ou ela não existirá.

O tal filtro é que torna difícil escrever. Se aplicado com muita força, se transforma em bloqueio. Entre pais e filhos, irmãos e irmãs, não deveria haver bloqueio. O filtro deve ser brando. Não importa o estilo, não é hora de se esconder atrás de frases bonitas. A palavra escrita é sempre uma forma de autoexposição. Por isso mesmo as cartas carregam uma sinceridade que faz delas mensagens fortes, sejam elas escritas por meninos de 9 anos ou por cientistas irônicos.

Ninguém mais escreve cartas e as posta no correio nem deixa confissões sobre um móvel onde serão encontradas pela mãe. Nossa troca de mensagens agora é basicamente eletrônica, perigosamente descartável. Ainda estamos com a tarefa (não percebida) de encontrar uma forma de trocarmos mensagens e guardá-las para a releitura no futuro.

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